Em livro recentemente republicado, desses que dão nova vida a suas antigas crônicas, Rubem Braga sugere uma reflexão diferente para a virada do ano. Pede aos leitores que pensem “nos seus próprios ridículos” e lembra que os mais envaidecidos de suas virtudes muitas vezes são pessoas azedas, infelizes e entediadas.
Tudo isso para desejar, no Ano Novo, “muitas virtudes e boas ações”, mas também “alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos”. Aos muito vaidosos de suas virtudes, ele sugere que pequem “pelo menos uma vezinha”, para relaxar.
Seria um pouco difícil repetir a recomendação nos dias de hoje. O palco fácil da Internet ajudou a alimentar certezas e a multiplicar julgamentos. A busca do eleitorado religioso e conservador jogaria no lixo a brincadeira sobre os pequenos pecados.
Mas a receita de Braga, que destilou sua fina ironia até 1990, ajuda a lembrar um Brasil mais suave e irreverente, um país que conquistou simpatia em todo o mundo – apesar das sempre lembradas desigualdades sociais – com sua aposta na descontração.
Ele teve sorte. Morreu cinco anos depois do retorno da democracia e não teve pela frente a tarefa de escrever sobre o 2022 que se aproxima. Um ano em que a violência verbal estará amplificada e a tolerância será testada com máxima intensidade.
O Brasil poderia ter bons motivos para celebrar em paz o seu bicentenário, mesmo no momento em que o mundo ainda enfrenta uma pandemia, acoplada a incertezas mundiais tanto na economia quanto na política. O país passou, porém, a ser visto com desconfiança.
Nas telas de televisão e nas páginas de jornais e revistas em todo o mundo, aquela imagem de país bonachão, de boa música e bom futebol, tem sido substituída pela de uma nação que tem a democracia ameaçada e cuida com desdém de um de seus principais ativos: a floresta tropical.
A partir dos meios de comunicação, a crítica alcançou os debates acadêmicos, desses que envolvem figuras capazes de exercer influência junto a quem toma decisões importantes em países centrais no cenário global.
Foi o caso do recém-lançado podcast “Nove questões para o mundo”. Elaborado pelo Council on Foreign Relations (CFR), uma organização independente de pesquisa e debate sediada em Washington, o programa convidou especialistas para traçar cenários dos próximos dez anos. As referências ao Brasil não são muito elogiosas.
Um dos episódios do podcast tem por título “Pode a democracia sobreviver”? A convidada especial foi a historiadora, professora e jornalista Anne Applebaum, detentora de um prêmio Pulitzer.
Em conversa com o presidente do CFR, Richard Haass, ela traça um cenário preocupante. Após a II Guerra Mundial, recorda, democracias se espalharam pelo mundo. Mas, na sua opinião, elas agora estão especialmente vulneráveis. E que países ela cita?
Além dos próprios Estados Unidos, onde partidários de Donald Trump invadiram o Capitólio após a vitória de Joe Biden, ela menciona nações como Polônia, Venezuela e Brasil. Observa que desigualdades ameaçam democracias e que muitos dos que se deixam seduzir por tentações autoritárias sentem-se de alguma forma esquecidos pelos governantes.
“Podemos ver movimentos antidemocráticos similares em várias partes do mundo”, alerta Applebaum. “Existe alguma coisa acontecendo? É bom prestar atenção”.
No último e mais importante episódio, “A ordem mundial tem um futuro”? Haass é entrevistado pelo jornalista Fareed Zakaria, da CNN, e ressalta a necessidade de se promover uma revisão da maneira como entendemos o mundo até agora.
Se até recentemente se poderia interpretar o cenário global apenas a partir de conceitos como soberania e equilíbrio de poder, pondera o professor, agora existem novos elementos na mesa, como o ciberespaço e a mudança climática.
Além disso, observa, o mundo se tornou mais descentralizado e, ao mesmo tempo, se percebe que o planeta é um só. E que não basta se pensar apenas em termos de interesses nacionais.
“Mesmo que os Estados Unidos sejam capazes de se defender de possíveis ameaças de países como Rússia e China, a temperatura do mundo continuará subindo”, recorda. “Sobre a tradicional geopolítica agora se acrescentam novas camadas de temas globais”.
Uma vez que as preocupações globais sobre temas como o aquecimento do planeta tendem a crescer, prossegue o presidente do conselho, a própria questão da soberania estará na ordem do dia. E que país ele cita como exemplo?
“Vejam o caso do Brasil”, sugere Haass. “Eles têm a maior parte das florestas tropicais. Se pensamos no direito de cada país de fazer o que quiser dentro de suas fronteiras soberanas, eles podem derrubar as suas árvores”.
“Mas se pensamos neles como cuidadores”, prossegue o professor, eles não teriam necessariamente o direito de fazer isso. “Se acham que podem, por que não impomos sanções e boicotamos produtos brasileiros?”
Democracia e meio ambiente. Estão aí dois temas que não se limitam mais aos cercadinhos dos chamados assuntos internos de cada país. Até há poucos anos, eram dois motivos de orgulho nacional. Agora deixam o país na condição de vilão.
Os que gostam de expor seu patriotismo como virtude, mas insinuam golpes de Estado e esvaziam órgãos de controle ambiental, podem não perceber. Mas, como na crônica de Braga, esquecem dos próprios ridículos.
Em 2022, mais do que nunca, o Brasil estará no radar do mundo. E não pelos melhores motivos.
Marcos Magalhães, Jornalista
Fonte: https://www.metropoles.com