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Novo “empate” antes que tarde

Novo “empate” antes que tarde

A atual destruição da Amazônia começou com a ditadura militar e civil de 1964. Os militares cresceram os olhos para a imensidão de floresta (60% do território nacional) e as enormes jazidas de minério que estavam no subsolo. Também enxergaram as imensas bacias hidrográficas adequadas à construção de usinas hidrelétricas; e, por fim, o que acabou alcançando o Acre, os estimados 50 bilhões de metros cúbicos de madeira de lei que existem nela.

Primeiro os “meganhas” (militares) pensaram em promover uma nova migração de trabalhadores nordestinos sem-terra para a região, planejando 100 mil famílias a partir de 1967, que seriam assentadas em “agrovilas”, depois “agrópolis, depois “rurópolis”, e responsabilizando o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) pelo programa, que só fez gastança de dinheiro público e privado e no fim não assentou nem 10 mil famílias.

Vai daí, os “milicos” largaram de mão os pequenos e foram se entender com os grandes para ocupar a Amazônia. Gulosos como eles só, os “jacus” começaram a chegar pelo Pará, Amazonas e Mato Grosso, chegando a Rondônia e ao Acre com os bolsos cheios de incentivos fiscais e empréstimos facilitados através da Sudam, BNDES, Banco do Brasil, Sudhevea e Basa. Veio junto um gadaiada de advogados desonestos especialistas em falsificar documentos.

No Acre encontraram os antigos seringais falidos e os seringalistas na pindaíba, devendo até o fundo das calças ao Basa. Era este banco que intermediava o aviamento a seringueiros nos bons tempos da borracha. Claro, o banco queria receber a grana “pendurada” e facilitou a venda de grandes extensões de floresta. Grupos como Pão de Açúcar, Bradesco, Cinco Estrelas, Bordon, Paranacre, Novo Oeste, Califórnia, entre outros espertalhões do centro-sul, se apropriaram de 5 milhões de hectares de floresta (um terço das terras acreanas) sem procurar saber se havia alguém morando nelas.

Havia sim, e muita! Quando a borracha morreu completamente, nos anos 60, os seringalistas deram no pé para Manaus, Belém, Rio de Janeiro, São Paulo e Europa, deixando para trás mais de 60 mil famílias (povos da floresta) sem pai nem mãe, se virando sozinhas com a seringa, a castanha, pequenas criações e hortas, e a caça miúda para sobreviver, confiando no conhecimento que tinham da floresta. Eles sabiam caçar, pescar, colher frutos, plantar pequenos roçados de macaxeira, dava pro gasto.

Mas ai, a partir de 1970, começaram a aparecer pessoas estranhas nos seringais: sujeitos calçando botas, com chapéu de cowboy, cinto com fivela larga e um revólver pendurado no coldre, chegavam mostrando um papel onde liam que seu patrão havia comprado o seringal e ia tomar posse do mesmo. Acrescentavam que ele não queria saber de seringa e precisava desmatar a floresta para criar boi. O prazo para a família sair da terra era curto, e quem não cumprisse ia se dar mal.

A notícia ecoou na floresta causando medo e incerteza. No seringal Bagaço, os seringueiros saíram para salvar a família. No Carmem, o capataz Horácio ofereceu como acordo um lote de 20 hectares para cada família, num chavascal, apontando uma arma na cabeça do ameaçado em recinto fechado. No seringal Sacado, uma parte tinha abandonado a colocação, mas dona Valdiza Alencar de Souza, logo apelidada de “mulher do sindicato”, caminhou a pé desde Assis Brasil a Brasileia (110 k km), depois pegou ônibus até Rio Branco para encontrar um tal dr. João Maia que estava na capital como delegado da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), segundo ela ouviu no rádio, para organizar sindicatos de trabalhadores rurais em municípios acreanos.

Valdiza marcou uma reunião em sua casa, na estrada de Assis Brasil, prometendo a João Maia convocar os seringueiros ameaçados para que falassem da situação. Era dezembro de 1975, chovia muito, Maia teve dificuldade para alugar uma camionete em Brasileia, com tração nas quatro rodas, para poder chegar ao local sem asfalto e com ladeiras íngremes. Conseguiu um motorista espanhol que parecia bêbado do dia anterior. Com o delegado da Contag foi o advogado Pedro Marques, um cearense grandalhão, corajoso e interessado na luta dos trabalhadores, e este repórter. Foi uma reunião histórica.

Cheiro de pólvora

Nasceu a partir dessa reunião o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, com Wilson Pinheiro na presidência e Chico Mendes como secretário-geral. Sua primeira ação foi criar, no começo de 1976, o “Empate” como forma de enfrentamento aos que espalhavam o terror na floresta.

Em Rio Branco, a situação estava como o diabo gosta. Desde 1971, quando a ditadura nomeou governador do Acre o professor Francisco Wanderley Dantas, membro de tradicional família seringalista, educado no Rio de Janeiro e reacionário de carteirinha, que logo ofereceu aos empresários terras fartas e mão de obra barata, com incentivos fiscais e outras vantagens.

Escancarou as porteiras do Estado para a boiada passar. O Hotel Chui, onde hoje funciona a Prefeitura, se tornou o ninho principal de revoada de “jacus” que chegava do centro-sul e do Sudeste com seus capatazes e jagunços. O hotel era do governo, mas estava alugado para o deputado federal da Arena (partido da ditadura) Nosser de Almeida.

Dali partiam, diariamente, em avião monomotor ou em possantes caminhonetes F1000, o bando que ia expulsar famílias de seringueiros. As delegacias municipais de polícia se encarregavam de dar cobertura aos agressores, em muitos casos, torturando seringueiros em suas instalações. O secretário de Segurança Pública, um coronel da PM trazido do Rio de Janeiro, chamava os trabalhadores de “jagunços”, e mandava agentes civis acompanhar e facilitar os acordos; o diretor de Polícia Judiciária era João Bernardino de Souza, advogado paulista também interessado em ter seu quinhão de floresta. Fazia acordos forçados em seu gabinete.

Oficiais de justiça e até juízes se envolveram a favor da bovinização do Acre. A imprensa, só em meados dos anos 1970, começou a denunciar os conflitos. Isso aconteceu depois que Wanderlei Dantas, o governador dos bois, encerrou seu mandato, e o presidente Geisel nomeou Geraldo Mesquita, da Arena (mas com passagem remota no Partido Comunista Brasileiro), que acabou se colocando contra o desmatamento da floresta.

A expulsão de famílias das colocações de seringa gerou cordões de miséria nas periferias urbanas na capital e nos municípios, e também na Bolívia. Em Rio Branco, a Polícia Militar não dava trégua às pessoas que chegavam desarrumadas na cidade, sem profissão, sem emprego, sem moradia, armando barracos precários que eram destruídos com motosserras e tratores.

O mapa dos conflitos em todo o Estado foi apresentado por este repórter na CPI da Terra (Brasília-1978) como “uma tábua de pirulito”. Da mesma Comissão participaram os bispos Dom Moacyr Grechi, que confirmou essa imagem, e Dom Henrique Ruth, que negou a existência de problema agrário em Cruzeiro do Sul. Foi lá, em seu município, que o dono de TV em São Paulo, Ratinho, adquiriu 500 mil hectares, supostamente com “grilagem”.

A partir de 1975 o Acre já fedia a pólvora e o Brasil e o mundo sabiam da destruição com desmatamento e queimada da floresta. Para isso contribuíam os correspondentes dos jornais “O Estado de São Paulo” (eu) e do “Jornal do Brasil” (Silvio Martinelo). Em 1977, o nanico Varadouro se tornou a voz dos povos da floresta.

A essa altura, a Contag já havia organizado oito sindicatos com cerca de 30 mil associados, cuja força foi demonstrada em setembro de 1979 no “Mutirão contra a Jagunçada”- que juntou 300 seringueiros e botou pra correr uma dúzia de jagunços armados e 45 operadores de motosserras na estrada de Boca o Acre (BR-317, braço da BR-364).

Após essa demonstração de força, o sindicalista Wilson Pinheiro anunciou, pelo rádio em Brasileia, que os seringueiros não deixariam mais que fosse derrubada nenhuma árvore, ao que, também pelo rádio em Xapuri, o seringalista Guilherme Lopes , secretário do prefeito, rebateu: “Se for assim, haverá muitas viúvas no Acre”. A primeira foi dona Terezinha, esposa de Wilson, morto em junho de 1980 de emboscada, ao cair da noite, na sede do sindicato.

Lula, ainda sindicalista, veio ao velório de Wilson, como veio oito anos depois ao velório de Chico Mendes (1988). No primeiro, discursou e disse que ‘”está na hora da onça beber água”, o que lhe valeu um processo no famigerado AI-5 da ditadura militar, junto com Chico Mendes, João Maia e o presidente nacional da Contag José Francisco da Silva. Os seringueiros que ouviram Lula e estavam indignados com o assassinato de Wilson encontraram na estrada de Assis Brasil o capataz Nilo Lopes, e o mataram como suspeito de ser o mandante. O capataz sofreu mais de 40 tiros, e a polícia logo prendeu e torturou o grupo de seringueiros.

Chico Mendes e seu legado

Com a morte de Wilson, Chico Mendes assumiu o comando da luta contra os “jacus”. Montou o centro da resistência em Xapuri e procurou conquistar aliados nas universidades, imprensa, organizações não governamentais – tanto nacionais quanto estrangeiras.

Com habilidade e coragem, criou o Conselho Nacional dos Seringueiros (1985), a Aliança dos Povos da Floresta e participou da criação do Partido dos Trabalhadores no Acre. Foi aos Estados Unidos e denunciou o BIRD pelos danos ambientais causados com a construção da BR-364 até o Acre, sem discussão com as comunidades regionais. Ganhou prêmios internacionais e foi comparado ao líder indiano Gandhi, pela maneira como defendia a Amazônia e o humanismo universal de suas ideias.

Isso não bastou! No dia 22 de dezembro de 1988, foi morto pelo peão Darci Alves, a mando do pai, Darli Alves, de tocaia, com um tiro de chumbo de espingarda calibre 12 que o atingiu no peito. Antes de morrer, porém, Chico deixou transformadas em Lei as Reservas Extrativistas que permitiu a permanência das famílias seringueiras em suas colocações. Legado que hoje sofre ameaças de parlamentares como Márcio Bittar e toda a bancada do boi no Congresso Nacional que não honra seus mandatos.

Elson Martins, jornalista e escritor acreano

Fonte: https://ovaradouro.com.br/