Sérgio Reis disse que não temia ser preso porque não era frouxo nem mulher. Gente como ele é gente misógina.
Antes disso, ele defendeu que era preciso invadir o prédio da Corte Suprema do país, retirar os ministros de lá “na marra” e quebrar tudo. Gente como ele é gente violenta.
Quando percebeu que a convocação pegou mal, disse que tudo não passou de uma brincadeira com um amigo da onça que viralizou o material à sua revelia. Gente como ele é gente covarde.
Assustado com a repercussão da história, ele caiu no choro. Gente como ele é frágil como um pintinho.
Há poucos dias, o cantor e compositor consagrado tentou se apropriar do movimento dos caminhoneiros, se autodeclarou líder da revolução bolsonarista e partiu para o ataque. Uma semana depois, estava desmoralizado e com a polícia batendo em sua porta. Um case de como gerenciar a própria biografia.
O episódio me fez lembrar de uma conversa, em meados de 2013, sobre a ascensão de grupos extremistas na esteira dos protestos de junho daquele ano. Na época ouvi de alguns especialistas em ciência política que a saída do armário de parte da turma era estranhamente salutar. Agora, ao menos, ficava claro como aquelas pessoas raciocinavam, que valores compartilhavam, e poderiam enfim ter seus argumentos rebatidos às claras, em espaços abertos, longe dos porões.
O extremista ficara visível. Faltou um detalhe: os meios.
Os meios por onde os armários da extrema-direita foram escancarados não possibilitavam debates ou contestações. Trabalhados nos mesmos porões de sempre, apenas convergiam e espalhavam todo tipo de desinformação e incitação ao ódio por canais gatunos de YouTube, perfis nas redes com avatares estranhos, correntes apócrifas de WhatsApp. As respostas elaboradas em jornais, revistas, sites de referências, literatura política não os alcançavam nem eram alcançadas.
Deu ruim.
Quando percebemos, gente sem o menor estofo ético ou intelectual já vendia soluções fáceis e tentadoras para problemas complexos e entupiram aos poucos as veias e artérias que faziam pulsar a jovem democracia brasileira.
Na pororoca que saiu do armário tinha gente que atravessou anos, décadas sem que a inclinação destrutiva fosse sequer percebida. Para espanto de muitos.
Na semana passada, Sérgio Reis mostrou que era um desses radicais dispostos a botar fogo no parquinho de Brasília se sua vontade não fosse obedecida. Sua vontade, no caso, era servir de correia de transmissão dos desejos destrutivos do ídolo Jair Bolsonaro. Ou seja, mandar fechar o Supremo Tribunal Federal e outras instituições que têm evitado que o Brasil, sob o atual governo, se transforme numa sucursal do Talibã.
Em uma semana, Reis ganhou fama de puxa-saco, virou piada relacionando berrante e gado, decepcionou fãs, perdeu parceiros e propostas de trabalho, deixou de ser fiador da credibilidade em anúncios. E, na sexta-feira, recebeu agentes da Polícia Federal em sua casa.
Não se sabe se o artista se converteu ao extremismo para chamar a atenção dos poderosos de ocasião ou se já era um extremista escondido debaixo da pele de artista que cantava as coisas simples da vida.
Pior: de um relativo ostracismo para novas gerações, ele passou a ter as intenções escrutinadas por quem não se convence com conversões repentinas. Deixou, assim, todo mundo saber que deve uma bolada em grana à União, que é suspeito em um negócio estranho envolvendo exploração de minério em terras indígenas e também de misturar verba pública com assuntos pubianos.
Nisso se aproxima mesmo de Bolsonaro, que vestiu a fantasia de político moralista enquanto usava verba parlamentar pra comer gente, empregava funcionários que não pisavam no trabalho e tem prometido fazer da Amazônia a Disneylândia dos grileiros.
“Poxa mas é preciso separar a obra do artista”.
Desculpa, mas a contemporização não funciona quando o artista aponta ou se associa com quem aponta uma arma para a cabeça da plateia. Isso não tem nada de idealismo. É agressão pura e simples com quem só deu a ele aplausos a vida toda.
Como artista, Sérgio Reis conquistou o que conquistou por mérito, talento e carisma. Mas seu flerte com o que o país tem de mais violento, misógino e covarde hoje impede parte de seus fãs, talvez a maioria, de ouvir suas canções sem associar automaticamente a sua voz a uma experiência trágica e dolorosa que gente como ele e seus ídolos ajudaram a pavimentar.
A memória das experiências autoritárias não é exatamente o que queremos ativar quando botamos pra tocar nossos cantores favoritos. Essas experiências já têm nas prateleiras atualizadas a marca de quem, em uma pandemia, mandou seus conterrâneos pararem de mimimi, avisou que não era coveiro, pediu para enterrarmos logo quem tivéssemos que enterrar e que os sobreviventes voltassem logo ao batente para salvar seu governo.
Desculpa, mas no pedaço de chão dessa minha casa esse berrante não toca mais.
Voltando aos especialistas de 2013, tenho dúvidas se era melhor mesmo que esse tipo de afeto saísse do armário como saiu e se apresentasse para o jogo com as armas (em alguns casos, literais) que apresentaram. Hoje o que eles querem é ameaçar o direito de os brasileiros irem às urnas em outubro de 2022. Um direito que levou 21 anos para ser reconquistado.
Fica difícil jogar quando o outro lado não quer mover as peças, e sim jogar gasolina e acender o isqueiro no tabuleiro — de quebra, influenciando e levando para a solução final uma multidão amorfa que encontrou em quem grita mais uma inspiração e um modelo de vida.
Que voltem para a insignificância.
Ou se acostumem com a vergonha e o desprezo de quem tem mais o que fazer nesta vida do que bater palma para extremista cantar.
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante.
Fonte: https://tab.uol.com.br