“Um pessimismo tão profundo, tão sereno como o seu não precisava mostrar-se indignado”, escreveu Susan Sontag sobre Jorge Luis Borges, em 1996, por ocasião dos dez anos da morte do escritor argentino. Publicado na coleção de ensaios Questão de Ênfase (Cia. das Letras, 2005), o texto Uma carta para Borges é de enorme lucidez. “Quando os livros se tornarem ‘textos’ com que ‘interagiremos’ segundo o critério da utilidade – disse Susan a respeito das tecnologias anunciadas então (não muito diferentes das que se anunciam agora) –, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Esse é o glorioso futuro que está sendo criado para nós, como algo mais ‘democrático’. É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade – e do livro”.
Aqui, detenho-me na primeira passagem, a de que Borges não precisava mostrar-se indignado. “Precisava, antes, ser inventivo – e você foi, acima de tudo, inventivo”, afirmou Susan Sontag.
Temos muito a aprender com Borges, nestes tempos em que – para mostrar capacidade de reflexão e de crítica, para não transparecer acomodamento perante a realidade social e política, para aparentar mínima autonomia diante da cultura dominante – parece ser preciso esbanjar ininterruptamente indignação. Não bastaria falar, expor, argumentar. Espera-se o grito. E o enfrentamento.
“Nenhuma vida racista importa”, diz o adesivo fixado no caixa do restaurante a que, de vez em quando, vou no centro de São Paulo. A comida é muito boa, com preço justo, feita por gente competente e comprometida com a coletividade. Adoro ir lá. Mas o adesivo do caixa me alerta. Naturalizamos no Brasil o racismo. Estamos a caminho de naturalizar a agressividade como resposta ao racismo – e a tantas outras violências, injustiças e desigualdades.
Para levar adiante boas causas, é imprescindível ser agressivo? É preciso desumanizar quem pensa e atua de maneira diferente? A civilidade e a cordialidade tornam-se desnecessárias (ou mesmo desaconselháveis) quando se referem às pessoas do grupo antagônico?
Formuladas assim, todas essas perguntas parecem recomendar um categórico não. Mas, na vida real, o tema é mais complexo. Não se faz omelete sem quebrar os ovos. Despertar a sensibilidade adormecida – ou a consciência embrutecida – exige provocação. Não concordo com os dizeres do adesivo do caixa. Todas as vidas importam. E antes: não tenho eu o direito de definir quais vidas não importariam. Mas reconheço na frase uma comunicação inteligente, que explicita uma verdade fundamental: o racismo é intolerável.
Mais que brusquidão, as grandes causas pedem inventividade: novos olhares, novos matizes, novos sentidos possíveis, novas contradições. Não podemos abandonar A Biblioteca de Babel nem As ruínas circulares: “Depois de nove ou dez noites compreendeu com alguma amargura que nada podia esperar daqueles alunos que aceitavam com passividade sua doutrina, e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais” (Ficções, Cia. das Letras, 2007).
A capacidade inventiva de Borges mostra não apenas que a imaginação supera em potência os nossos berros exaltados. Recorda-nos de que não nos cabe acomodar com o modo como lutamos nossas causas. É preciso cuidar do tom. O discurso importa. A escolha das palavras é decisiva não por um formalismo ou por boas maneiras, mas pelo sentido humano que elas contêm, que elas expressam, que elas produzem. Com as palavras nos conectamos com os outros. Somos palavra.
Sei que as causas não vêm “promover o diálogo”. Não são preleções acadêmicas. Necessitam gerar engajamento. Vêm denunciar a violência, a arbitrariedade, a corrupção. Buscam transformar a sociedade. Vêm combater os autoritários e os intolerantes. E, na guerra, às vezes, é preciso expor os inimigos em praça pública. Tudo isso é verdade. Mas – eis o ponto – nem só de guerra vivem as grandes causas.
Guerrear é preciso, mas só guerrear pode confinar a luta ao curto prazo, limitando seu horizonte maior de transformação. Pode, ainda, enviesar os objetivos, numa substituição da justiça pela vingança, o que seria triste. Quem um dia se entusiasmou por um ideal de justiça não se pode contentar com humilhar o adversário.
Sempre, mas especialmente nas grandes causas – que necessariamente são longas, são batalhas de gerações –, não importa apenas o resultado, mas o caminho percorrido até chegar ao destino. Mais: importa quem nos tornamos ao longo do caminho. Magnânimos ou mesquinhos. Corajosos ou simplesmente espertos. Rebeldes ou apenas enfezados.
A verdadeira vitória nunca é a aniquilação do lado contrário. É o reenquadramento dos afetos, numa mudança de compreensão, numa abertura a novas e maiores aspirações, num renovado olhar sobre nós mesmos e sobre os outros. A guerra não é capaz de tanto. E, por haver tanto a se indignar e a transformar, é preciso ser inventivo.
Nicolau da Rocha Cavalcanti, advogado e jornalista