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Negacionismo no Banco Central

Negacionismo no Banco Central

O Banco Central decidiu continuar não vendo os fatos ao redor e ignorar as quedas da inflação, dos juros futuros e das projeções. Não quer ver também a melhora da conjuntura fiscal com o avanço do arcabouço. Esse negacionismo pode acabar, num efeito bumerangue, afetando negativamente as expectativas do próprio mercado, que já previa queda de um ponto percentual e meio de juros até o final do ano. Um erro grosseiro do Banco Central. No fim de semana, Roberto Campos Neto recebeu ligações até da bancada do agronegócio bolsonarista, avisando que ele estava ficando isolado.

O que a maioria absoluta do mercado considerava é que o BC iria abrandar o comunicado e indicaria queda na próxima reunião. E ele decepcionou. Havia ontem até uma dificuldade de entender o tom do comunicado após a reunião. Nos últimos dias, o varejo, a indústria, os serviços e até ex-ministros do governo Bolsonaro demonstraram sua insatisfação diretamente ao Banco Central. O BC evidentemente não tem que decidir por pressões políticas, governamentais, nem empresariais. Mas ele está se colocando em situação de “conflito e conflagração”, na expressão de uma autoridade, por não se render à realidade dos fatos econômicos.

Para se ter uma ideia da teimosia do Banco Central, recentemente, um interlocutor falou ao presidente Roberto Campos Neto que a prévia do IGP-M tinha dado o número negativo mais baixo da história. Foi 6,7% de deflação em 12 meses. E a resposta dele foi dizer “mas os juros subiram na Austrália e no Canadá”. Ora, o mesmo Roberto Campos que repete não haver relação mecânica entre taxa de juros e aprovação do arcabouço fiscal no Brasil, acha que há uma relação entre juros no Canadá e Austrália com os do Brasil? E isso pelo visto foi levado ao comunicado no trecho em que pontua “a retomada de ciclos de elevação de juros em algumas economias”.

O Banco Central entra em contradição com sua própria cartilha. Ele repete no comunicado que trabalha com o que ele chama de “horizonte relevante”, o que significa 2024. E em qualquer cenário apontado pelo próprio BC, o número de 2024 está no intervalo de flutuação da meta. No texto de ontem, ele avisa que o “Comitê reforça que irá perseverar até que se consolide não apenas o processo de desinflação, como também a ancoragem das expectativas em torno de suas metas”. As expectativas já estão ancoradas, aliás, graças em grande parte ao seu próprio esforço feito tempestivamente. Só que agora, quando o cenário alterou completamente, o BC prefere adotar uma postura negacionista.

Enquanto isso, o governo enfrenta um aperto ainda maior no arcabouço, aprovado ontem no Senado. A decisão do senador Omar Aziz de manter o indexador das despesas com a inflação de julho a junho, reduz em R$ 32 bilhões a R$ 40 bilhões a possibilidade orçamentária do ano que vem. O Ministério do Planejamento tem tido dificuldade de elaborar o orçamento, cumprindo todos os mínimos constitucionais. A inflação em 12 meses terminada em junho será tão baixa que isso reduzirá as despesas previstas.

A Câmara tem dito que se a inflação fechar o ano com um número maior, pode-se fazer um ajuste com a votação de um crédito suplementar. Mas o governo não quer isso, porque teme ficar mais uma vez na mão da Câmara dos Deputados. O governo prefere formular o orçamento projetando a inflação até o fim do ano e, depois, se o índice ficar menor, fazer o cancelamento das despesas.

O que essa briga em torno do arcabouço mostra é que, sim, a inflação tende a subir no segundo semestre. E é isso que está no comunicado do Banco Central. Mas então em que o BC errou? Errou porque essa elevação está prevista, é efeito estatístico da retirada da conta das deflações fabricadas pelo governo Bolsonaro e, em nenhum momento, a alta representa o retorno do surto inflacionário que levou o Banco Central a agir, corretamente, em 2021.

O BC costuma dizer que não é ele que faz os juros, mas o mercado. Parece não entender a relação circular na formação das expectativas. Antes da reunião, o mercado projetava queda dos juros em agosto. Hoje as projeções devem ser alteradas. O mercado ficará mais pessimista por indução do BC. Ao errar, a autoridade monetária está prejudicando o próprio instituto do Banco Central independente. O negacionismo é ruim em qualquer área, inclusive na política monetária.

Miriam Leitão, jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/