A pesquisa de opinião realizada pelo Datafolha e publicada na Folha de São Paulo de segunda feira (2 de setembro)
indica uma acelerada perda de popularidade e aceitação do governo de Jair Bolsonaro. A crise internacional sobre a política na Amazônia, a indicação do filho para embaixador do Brasil nos Estado Unidos, os cortes de recursos para a educação e para a pesquisa científica, a continuidade da crise econômica, do desemprego, a alta do dólar e os desvarios de quem não tem a mínima ideia do que significa a liturgia do cargo formam um caldo de cultura capaz de levar o governo ladeira abaixo.
Estes dados, além de uma certa satisfação pessoal com a reação do povo frente a tantos desmandos, não devem nos dar grande alento, pois a crise da política brasileira não está no desgoverno que se acentua, mas é anterior. Bolsonaro já é uma consequência. Político de baixa respeitabilidade, praticamente sem partido, ficou conhecido, durante seus 28 anos como deputado federal, como uma caricatura trágica à extrema direita, que pensávamos em desuso.
Portanto, a grande questão não é ver o governo Bolsonaro derretendo, mas o vácuo que existe na política brasileira atual. A negação de Bolsonaro não aparece em projetos populares de centro-esquerda ou de esquerda, com lideranças capazes de levar novos ventos à população, mas em uma direita pseudomoderada, ou assim autodefinida, que chegaria como salvação, para afastar, finalmente, os extremismos: da direita e da esquerda.
O discurso político do grupo Bolsonaro, desde a campanha eleitoral, foi exitoso em associar o PT e os governos de Lula e Dilma com a extrema-esquerda e esta com a corrupção, o comunismo, o ateísmo e a destruição da família. É cômodo aceitar o argumento de que tudo foi culpa de fake news. Houve, sem dúvida, fake news, mas há uma questão anterior a elas: por que as pessoas estiveram predispostas a aceitar como verdade, ou acharam conveniente que mentiras fossem propagadas, no nível do besteirol, como a famosa “mamadeira de piroca” ou o kit gay?
Os estudiosos da análise do discurso se ocupam com uma questão central que é a recepção do discurso. Nessa perspectiva, a questão poderia ser formulada da seguinte maneira: por que as pessoas dão estatuto de verdade para algumas coisas e não outras em momentos históricos distintos? Será que as fake news de 2018 foram mais poderosas que as imensas campanhas da grande mídia contra o PT nas 4 eleições presidenciais em que ganhou? Ou, tomando Porto Alegre como exemplo, já que a cidade foi governada, durante 16 anos seguidos, por prefeitos petistas: quem viveu nesta época lembra bem da campanha diuturna da mídia de TV, rádio e impressa contra o PT. Por que então os eleitores brasileiros votavam no PT?
Por que agora estultices como mamadeira de piroca, kit gay, ideologia de gênero parecem possíveis de serem verdadeiros?
A resposta não é fácil, mas podemos alinhavar a hipótese de que este discurso assustadoramente descabido teve receptividade porque o sistema político-partidário, desde 2013, paulatina e constantemente vinha sendo destruído pela mídia e pela operação lava jato. A política era graficamente mostrada na TV como um cano de esgoto que jorrava dinheiro. Tudo que era público, todos os que eram eleitos foram criminalizados. Lula passou a ser o grande ladrão nacional, sem haver nenhuma prova contra ele. Foi construído na população um profundo sentimento de traição protagonizada por Lula e pelo PT. O Judiciário tornou-se o princípio da verdade e a negação da política, sendo mais político do nunca. Primeiro, representado na figura carismática de Joaquim Barbosa, aquele presidente do STF que dirigia as sessões do Supremo em pé, depois com um juiz de primeira instância de província, que logo se vendeu por um prato de lentilhas. Some-se a tudo isso a Procuradoria Federal, protagonista de espetáculos de grande primarismo, como o powerpoint de bolinhas, muito ao gosto de quem queria provar a culpa do PT a qualquer custo.
Tanto o PT como o PSDB, os dois grandes partidos capazes de chegarem à presidência, foram os grandes perdedores do desmonte. O objetivo era destruir o primeiro, o segundo foi um preço que teve de ser pago. Como o PSDB não era o inimigo, diga-se de passagem, se pensava vencedor quando patrocinou o impeachment, agora está hibernando, por vontade própria e dos que o derrotaram. Mas o PT não.
A grande mídia, principalmente aquela que agora se coloca em uma atitude crítica (ma non troppo) a Bolsonaro, constrói um discurso perverso, onde o atual desgoverno é identificado como de extrema-direita em antagonismo à extrema-esquerda que seria o PT, o que é repetido a todo momento. O cenário está sendo preparado, com cuidado, para a terceira via, que pode ser representada por um PSDB mais à direita com João Dória, pelo atual “primeiro ministro” Rodrigo Maia, ou pelo partido das Organizações Globo sem disfarce, com Luciano Huck, seus empresários bem organizados e “tábatas” genéricas simbolizando a juventude. Eis o novo chegando, agora sem Amoedo.
Estamos a pouco mais de um ano das eleições municipais e precisamos refletir seriamente sobre o pleito que virá, à luz dos acontecimentos que estamos vivendo. O município é o lugar em que as pessoas vivem, trabalham, sofrem seu dia-a-dia, onde têm suas horas de lazer e experimentam seus medos contra violências fictícias ou verdadeiras. Na próxima eleição, precisamos fazer do município o tema central. As coalizões de esquerda devem identificar, em cada município, quais sãos os problemas mais urgentes, como eles foram ou não equacionados pelos últimos governantes. Muito se pode fazer em uma cidade independentemente do governo federal, e é sobre estes pontos que temos de conversar com a população. Se quisermos ter qualquer chance de governar, temos de convencer que somos capazes de realizar alternativas no nível municipal. Esta será a oportunidade de a esquerda se reorganizar. E só então pensar em 2022.
Professora Titular do Departamento de História da UFRGS
Fonte: https://www.sul21.com.br