Nestas eleições municipais, o que está sendo definido como “a derrota do PT” é muito mais grave do que a sorte de um partido ou de uma tendência política. Na Amazônia, houve o crescimento forte de grupos criminosos na política, com a aliança entre o crime ambiental e as facções do Sudeste que migraram para lá. Quando o candidato do PL em Fortaleza, André Fernandes, fala um “dane-se” para o aumento do feminicídio, ou diz com orgulho não ter tomado vacina, o risco é que, em uma grande capital do Nordeste, o país retroceda em duas agendas fundamentais: a luta contra o feminicídio e em favor da cobertura vacinal.
A eleição vai acabar em menos de uma semana. A esquerda terá de analisar as causas de não estar conseguindo conexão com grupos da sociedade brasileira. Isso é um problema dela e do governo. O do país é como derrotar forças políticas que têm agenda que nos tiram do mundo civilizado.
A briga não é ideológica. A esquerda, o centro e a direita são necessários em qualquer democracia. Há grupos ou quadros de direita dentro de cada partido que defendem a democracia, o programa nacional de vacinação, a proteção de grupos vulneráveis e podem ser aliados na causa ambiental. O centro mais fortalecido será muitas vezes o fiel da balança em muitas agendas civilizatórias. Mas, por trás do que está sendo definido como a “derrota da esquerda”, o que se esconde é o aumento do risco no Brasil como um todo. Não se trata apenas do enfraquecimento de alguns partidos, que sempre será um movimento natural e pendular da política.
Em inúmeras cidades da Amazônia, a economia gira em torno das atividades ilícitas, por isso buscaram também o poder político. Em cidades como São Félix do Xingu, a disputa se deu entre grupos diferentes de bandidos ambientais. Houve uma política deliberada do governo Bolsonaro de estimular o desmatamento, enfraquecer leis com o “passar a boiada”, e desmontar os órgãos de controle. Isso aumentou a musculatura do crime.
O caminho de volta é mais difícil do que parece. Os incêndios que varreram o Brasil na atual seca, principalmente na Amazônia e no Pantanal, mostraram que, na maioria absoluta das vezes, o fogo foi ateado por proprietários e por criminosos ambientais. Na última sexta-feira, a reportagem de Eduardo Gonçalves e Dimitrius Dantas aqui do GLOBO mostrou que proprietários de terra foram identificados pelo Ibama como responsáveis por alguns dos grandes incêndios. Um deles destruiu, em Corumbá, Mato Grosso do Sul, uma área equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo. A suspeita é que tenha sido iniciado para usar a área de mata para pasto. Um dos suspeitos é o advogado e fazendeiro Luiz Gustavo Battaglin Maciel que tem entre seus clientes, o traficante Fernandinho Beira-Mar.
O GLOBO mostrou também, em reportagem de Eduardo Gonçalves, na sexta, 10 de outubro, que criminosos ambientais foram os campeões de voto em várias cidades no topo de ranking de desmatamento, como Apuí e Lábrea, no Amazonas, Marcelândia e Colniza, no Mato Grosso, e em São Félix do Xingu, no Pará. Isso não significa que a população da Amazônia não se importa com a destruição da floresta. Significa que o crime de desmatamento, grilagem e garimpo ilegal avançou, se fortaleceu, virou polo da atividade econômica. Lutar contra isso não é trivial, nem um problema só da esquerda.
Claro que quem está no governo precisa ter ações eficazes de comando e controle, fortalecer atividades alternativas e compatíveis com a floresta em pé. E como quem está no poder é o PT, naturalmente a cobrança cai sobre ele. Mas imagine se, em um futuro próximo, o PT virar um partido pequeno e a esquerda encolher mais. A tarefa de deter esse projeto continuará sendo de todos os democratas, de todos os que querem proteção ambiental, independentemente da tendência política de cada pessoa.
Há uma certa direita no Brasil, com políticos dispersos em vários partidos, inclusive alguns identificados como de centro, que é antidemocrática, tem conexões com criminosos ambientais, é contra a ciência, fortalece a truculência policial, e diz “dane-se” para direitos fundamentais de grupos discriminados. E isso é um problema do Brasil.
Míriam Leitão, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/