Passados dez anos, há muitas análises sobre as razões dos protestos de 2013. São reflexões importantes, pois aquelas manifestações dizem muito sobre as mudanças de crenças e valores de uma sociedade que se tornou mais exigente. São elementos que repercutem na política até hoje.
A imagem é de uma energia potencial acumulada que se materializou diante do gatilho representado pela repressão policial às manifestações de estudantes contra o reajuste da tarifa de ônibus em São Paulo. O sentimento de alívio de muitos ao assistir o fervor nas ruas dá uma dimensão da indignação que se acumulava.
Várias análises remetem ao anseio, até então incompreendido, por maior eficiência na ação estatal, com a oferta de serviços públicos de qualidade e o combate à corrupção. Grosso modo, as análises não contemplam e até afastam a hipótese de a situação econômica ter tido influência nos protestos.
No entanto, se na superfície, o ambiente econômico parecia saudável, com desemprego baixo e bom crescimento do PIB, entre as camadas populares havia razões para apreensão. O quadro era de piora da sua situação financeira, o que ameaçava as novas aspirações de prosperidade e de aumento do padrão de vida –, conforme capturado em pesquisas da época sobre a chamada nova classe média –, frutos da rápida transformação na vida de muitos em um curto intervalo de duas gerações.
O retrato do mercado de crédito era ingrediente central. As dívidas em atraso dos indivíduos se acumulavam rapidamente, atingindo patamares recordes (um estoque equivalente a quase metade da chamada renda nacional mensal disponível das famílias). Enquanto isso, aumentava o uso do cartão de crédito rotativo. As classes médias estavam no aperto.
É nesse contexto que a inflação deu as caras (acima de 6% aa), principalmente a de alimentos, que atingiu o pico de 16% aa em maio de 2013. Como resultado, houve queda, ainda que moderada, da renda real dos indivíduos.
Assim, depois de anos de aumento consistente do consumo de bens duráveis (exceto no auge da crise global de 2008-09), configurou-se um quadro de estagnação já a partir de 2011. A mesma situação se dava no consumo de serviços das famílias.
A nova realidade frustrava uma sociedade que ansiava por consumir mais e planejar o consumo futuro – como apontado nas pesquisas de Renato Meirelles –, especialmente os jovens, que esperavam mais do país que muito prometeu. Mais do que isso, alimentava o medo de perda de status quo.
Formamos uma sociedade pouco coesa, com clivagens regionais e sociais bem delineadas. No entanto, as manifestações parecem ter forjado um sentimento de união. Não durou muito.
Talvez pelo medo das urnas naqueles tempos agitados, o governo Dilma, com vistas à reeleição, buscou estimular artificialmente a economia, contando com a falha de instituições democráticas, como o Congresso, o Tribunal de Contas e o TSE. Enquanto isso, o recrudescimento do discurso “nós contra eles” na campanha eleitoral alimentou a cisão da sociedade – aprofundada com Bolsonaro.
A mais grave recessão de nossa história, entre meados de 2014-16, inviabilizou o sonho de gerações. Somou-se à indignação da sociedade a raiva contra os políticos e as instituições democráticas. E o sentimento de pertencimento se esvaiu.
Todos esses elementos continuam presentes. A conquista da confiança e a pacificação da sociedade dependerão de o país passar por vários testes de robustez democrática – principalmente na atuação dos Poderes, evitando extremos de omissão e de abuso de suas atribuições – e, certamente, de ações para a volta do crescimento econômico, com justiça social.
Não é tarefa fácil. Requer reformar regras que induzem baixas produtividade e crescimento da renda. Um exemplo é a reforma tributária. A criação do IVA será grande acerto do governo, algo desafiador em um país em que o setor produtivo desconfia da ação estatal e teme mudanças nas regras do jogo – a resistência não se resume ao patrimonialismo.
Trata-se de passo essencial no caminho para um ambiente de negócios saudável e uma estrutura tributária neutra na decisão de investimentos. De quebra, poderá contribuir para a justiça tributária, enquanto a transparência quanto à carga de impostos sobre o consumo irá favorecer o exercício da cidadania.
A classe política deve à sociedade esse esforço.
Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos e ex secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo.
Fonte: https://oglobo.globo.com/