A presença escancarada do fascismo ainda assusta, mas ventos democráticos voltam a soprar nas Américas. Sopraram com força de vendaval, na Bolívia, com a surpreendente e indiscutível vitória de Luis Arce e do MAS de Evo Morales, derrotando nas urnas um golpe clássico latino-americano. E ainda no Chile, com a derrubada histórica da Constituição pinochetista e a convocação inédita de uma Assembleia Constituinte exclusiva e com paridade de gênero, levando uma bem conhecida integrante da velha elite do país a falar em “invasão alienígena”.
Sopram também vindos do Norte, com a eletrizante vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos. A onda reacionária manteve-se forte naquele país, mas perdeu a eleição presidencial. De lavada no voto popular e em uma virada carregada de simbolismo no Colégio Eleitoral, sobretudo na Geórgia, um estado historicamente marcado pela supressão do voto negro.
Já há algum tempo os ventos democráticos sopram também em terras brasileiras. Sopram a favor dos já não tão novos atores políticos emergentes, negros, mulheres, indígenas, populações periféricas e movimentos LGBTQI+, empenhados em implodir nossa velha lógica machista e colonial.
Abri o ano com um artigo no jornal Folha de São Paulo (“A década e suas viradas”, 1º.jan.20) enfatizando, em pequeno balanço do país na década que se encerrava (2010-2019), a conquista e o reconhecimento legal de direitos coletivos no período: entre outros, o Estatuto da Igualdade Racial, os direitos trabalhistas para o serviço doméstico, o reconhecimento do casamento homoafetivo e a constitucionalidade da autoidentificação quilombola.
A vitória eleitoral da extrema direita nas eleições de 2018, expressão brasileira da onda reacionária mundial em aliança de ocasião com o neoliberalismo local, só se tornou possível como subproduto de uma cultura política golpista e elitista, de larga tradição no país, que produziu o questionamento do resultado da eleição de 2014 e o açodamento claramente político da prisão de Lula.
No pandêmico 2020, porém, muitos dos responsáveis pelo nosso triste cenário político, assustados com o programa da extrema direita vitoriosa, começaram a recuar.
Nesse meio-tempo, o centrão pode ou não ter finalmente controlado o autoritarismo de Bolsonaro, e o neoliberalismo pode ou não ter finalmente aprendido a respeitar a vontade das urnas, enquanto espera “mansamente” a próxima crise, mas ventos antirracistas e antipatriarcais certamente continuaram a soprar, mesmo sob ameaça.
O neofascismo existe e continua a demonstrar preocupante força eleitoral, mas as conquistas de direitos também possuem lastro popular —dificilmente sofrerão retrocesso de monta em um contexto institucional minimamente democrático.
Maiorias eventuais vão e vêm. Nas democracias vence quem tem mais voto. Foi a força do voto que tornou possível à Bolívia retornar à democracia, ao Chile finalmente enterrar a ordem pinochetista e aos EUA sobreviver ao pesadelo Trump. Só essa força pode nos fazer superar nosso pesadelo particular.
Que bons ventos soprem forte nas cidades brasileiras no próximo domingo (15). Às urnas.
Hebe Mattos, Professora titular livre do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), é uma das organizadoras do livro ‘Historiadores Pela Democracia’ (ed. Alameda)
Fonte: https://www.folha.uol.com.br