A divulgação, pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com base no Cadastro Único, de estudo de Marco Antonio Carvalho Natalino mostra que o número dos chamados moradores de rua aumentou de 21.934, em 2013, para 227.087, em 2023: 935% em dez anos. Embora não sejam números relativos à totalidade da população, são indicativos de uma tendência de exclusão no que se refere a uma crise social grave. Os aspectos profundos do problema, porém, não se revelam nos fatores e motivos reconhecidos pelas próprias vítimas.
Há um conjunto imenso de complicações relacionadas com o que é de fato um dramático problema social. Os dados referem-se a causas definidas subjetivamente pelos próprios moradores de rua. É o que dificulta a pesquisa sobre suas verdadeiras causas, as estruturais, que se situam fora do marco da consciência da vítima. Porque limitada a impressões que ela pode ter de sua situação com base nos motivos de terceiros no respectivo grupo de referência, como a família, os vizinhos e outros agentes de relacionamentos cotidianos.
No rol do que as vítimas alegam ser motivos de morarem na rua estão: “problemas com familiares e companheiros (47,3%), que se tornaram razões para o desemprego (40,5%), o alcoolismo e outras drogas (30,4%), a perda de moradia (26,1%), ameaça e violência (4,8%), distância do local de trabalho (4,2%), tratamento de saúde (3,1%), preferência ou opção própria (2,9%) e outros motivos (11,2%)”.
No geral, essas indicações de motivos não são causas das pessoas morarem na rua, mas consequências. Em conversas que tenho com moradores de rua de São Paulo, os detalhes antropológicos de sua sociabilidade anômica mostram que é preciso levar em conta a complexidade das mediações e da causalidade recíproca de diferentes fatores decorrentes um dos outros na situação dessas pessoas.
O desemprego demorado acarreta tensões nas famílias, porque gera insegurança e decadência social, sobretudo a dessocialização das vítimas. O que elas foram até então deixa de ter sentido, a vida fica sem referências. Os membros da família atribuem responsabilidade por essa crise ao marido, ao pai, que não encontra trabalho permanente, que começa a beber, eventualmente a usar drogas. A situação de exclusão laboral se torna um estigma. Acarreta vergonha tanto para o desempregado quanto para seus familiares, que, impotentes, o penalizam e tornam insuportável a vida em família.
Sair de casa acaba sendo o resultado de uma expulsão disfarçada. Quando a fuga é da família ainda há a alternativa da favela. Quando é solitária, morar na rua é a alternativa.
A variação do tempo de moradia na rua, justamente, recomenda que o “conceito” de morador de rua é impróprio e frágil. Sugere os graus de dificuldade da vítima para retornar a uma situação de normalidade social.
A maior demora de permanência na rua está relacionada justamente com problemas familiares. A desagregação do principal grupo de referência da pessoa na estabilidade social entre nós. A família se tornou frágil por um conjunto de fatores que não se restringe a desemprego e suas decorrências. Para uma parte da população ela se tornou temporária, perdeu os mecanismos de reintegração do pai pródigo ou do filho pródigo. Cujo retorno a casa já não é esperado.
Há um belíssimo conto de Ana Maria Martins, em “Sala de espera”, cujo tema é o marido que se vai, que não tinha consciência do caráter relacional e recíproco do casamento. Na estação da Luz para tomar um trem para o interior, vê famílias embarcando. Percebe o que está abandonando. Resolve voltar para casa. Quando lá chega, encontra a casa vazia.
Na pesquisa do Ipea, 33,7% da população está na rua há até seis meses, 14,2% entre seis meses e um ano, 13% entre um e dois anos, 16,6% entre dois e cinco anos, 10,8% entre cinco e dez anos e 11,7% há mais de dez anos. A rua é apenas o lugar de uma sociabilidade alternativa e anômala de lenta desagregação da sociabilidade integrativa, que pode trazer a vítima de volta à casa e à morada.
Nesse sentido, os rótulos aparentemente sociais dizem algumas coisas sobre a realidade mas silenciam sobre outras. Silenciam sobre a dimensão propriamente antropológica da vida que é a do morar, do coabitar, da sociabilidade da convivência das diferenças que formam o todo, por exemplo, da família. Mas também da comunidade vicinal, sobretudo do reiterativo da vida cotidiana.
Nesse sentido, o Brasil não tem propriamente uma política de superação do estado de anomia dos que são privados das mediações sociais que tornam possível o tornar-se membro de uma sociedade, ser integrado, isto é, ser cidadão. Anomia da rua e cidadania se repelem, o anômico desintegra.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Fonte: https://valor.globo.com/