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Minha obrigação com o Brasil

Embora já devidamente vacinada (duas doses da Coronavac; tentei ver se virava jacaré!!!), ainda assim não me iludo. A interdependência sanitária no mundo e, portanto, no Brasil, vai ser o mero pano de fundo para que o Monstro mate mais pessoas aqui do que as Guerras Mundiais já mataram. E quando falo do Monstro não estou me referindo ao vírus – insidioso, esquisito, onipresente e voraz. O Monstro a que me refiro é aquele que, podendo fazer um montão de coisas para nos salvar da catástrofe, se encastela na sua ignorância, no seu despudor, no seu ego sem tamanho de tanto tamanho que tem, saindo por aí a carregar pobres criancinhas, ele sem máscara no rosto e ainda apertando as mãos de tanta gente fascinada e incauta: de onde saíram tantos fanáticos, meu Deus?!

Leio o que encontro. Pesquiso sobre a história da vacinação neste país. Passo horas e horas buscando informes da OMS, da ONU, da OIT, da OPAS e do Ministério da Saúde daqui, do Conasses e do Conassems – as entidades que reúnem secretários de saúde dos Estados e municípios – e vai-se descortinando, diante de mim, um quadro de horror. Inimaginável. Já comparei com o Inferno da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, mas não, nada, nada se parece com a  hecatombe que se avizinha, que se aproxima de nós.

Sem a coordenação superior – mas ainda mais que isso – sem que de cima venha o “claro raio ordenador” como esperar que em ondas sucessivas da pedra do mal atirada num poço e que vai produzindo ondas cada vez maiores de outros malfeitos possa vir algo que impeça tamanha selvageria?

Na parte de baixo da pirâmide – ai!, por que viver num mundo onde os próprios homens criaram entre si diferenças que se acentuam a cada momento um pouco mais e de forma ainda maior! – a escolha é macabra: morrer de fome ou de covid. A rua, revirando latas de lixo à cata de algo pra comer – ou amarrado num leito de hospital porque tiveram de entubá-lo sem sedativo algum – aqueles que ainda conseguiram um leito de CTI, porque agora já a maioria nem chega a ter leito, já que a coisa se espalhou, matou os velhos que não puderam escapar – meu ex-marido e pai de meus filhos entre esses, ele que tanto queria viver e que programava fazer com os filhos, a mulher e os netos (seria também?!) todo mundo junto uma viagem no Trem Siberiano, quando chegasse ao fim este ano nos seus 80 anos de idade. Vejo a letrinha dele, miúda e tímida, como ele mesmo foi, anotando no Álbum do Bebê de nosso filho caçula o dia e a data do nascimento da criança, sem saber que poucas horas depois da hora em que nosso filho nasceu, ele próprio morreria 50 anos depois…

Agora são os jovens que atravancam as UTIs, fortes que são, duros na queda, sucumbem ao fim de muita luta ou são logo liquidados, se obesos e diabéticos como o filho de um amigo meu… Mas estes são os que escapam das estatísticas porque esses eu conheço: são os visíveis nesse mar de invisíveis em que o Brasil se transformou. O Brasil só, não, o mundo do trabalho nômade. Não vem aí o “Nomadland”, filme mais que premiado de uma diretora  chinesa, que só precisou de uma artista profissional, os demais são todos personagens reais, gente viva? Isto é, meio mortos diariamente à caça de o que comer. Onde estamos? Aonde fomos parar???

Grito.

Mas pareço gritar sozinha porque também eu, embora já vacinada com as duas doses da Coronavac, também tenho de me esconder para não espalhar mais ainda vírus mutante por aí. Isso é vida?

Acho que não.

O inferno chegou.


Sandra Starling, historiadora

Fonte: https://osdivergentes.com.br