Tudo nos une, nada nos separa. O autor dessa frase é um presidente argentino que se tornou nome de uma praça na Tijuca, Rio de Janeiro: Sáenz Peña.
Talvez tenha exagerado, pois sempre houve um ou outro problema entre Brasil e Argentina, apesar de a tendência histórica apontar para a cooperação.
É difícil de prever o que acontecerá exatamente com a eleição de Javier Milei. Um homem que se inspira no diálogo com o espírito de um cachorro morto, através de um médium, é irredutível às previsões.
Mas a História pode nos dar indicações de que nada de muito importante vai acontecer. Os dois países já superaram questões muito mais delicadas do que o mau humor ocasional de um presidente.
Não é preciso ir muito longe. Bolsonaro não falava com Alberto Fernández e pouco se importava com o Mercosul. Bolsonaro passou e as relações Brasil-Argentina viveram um novo momento – o próprio Mercosul retomou sua importância.
Já houve estresse muito maior, superado na história comum. Houve questões territoriais em torno das Missões, e o tema teve de ser arbitrado pelo presidente do EUA, Grover Cleveland, a favor do Brasil.
No século 20, um dos problemas que Brasil e Argentina viveram foi a construção da Usina de Itaipu. A Argentina achava que era uma grande intervenção num rio compartilhado e queria o direito de ser consultada. Chegou a levar esse tema à Conferência do Meio Ambiente em Estocolmo, em 1972.
A questão nuclear, que costuma dividir países vizinhos e desconfiados entre si, não o fez com Brasil e Argentina. Os dois se recusaram a assinar o tratado de não proliferação. Sentiam-se discriminados pelos países mais poderosos e tinham dificuldades de obter tecnologia mesmo para fins pacíficos. O entendimento acabou se prolongando no momento em que a Argentina anunciou ao Brasil que havia conseguido enriquecer urânio. Isso foi no início da década de 1980. Já em 1985, o entendimento era tão sólido que Sarney e Alfonsín assinaram um tratado na região de Foz do Iguaçu e, a partir daí, abriu-se um processo de cooperação no campo nuclear.
Brasil e Argentina não só estavam longe da guerra, mas viviam os primeiros anos de retomada da democracia. Não havia apenas distensão mundial, mas também um processo de globalização em curso e grandes acordos regionais. Estavam dados os fundamentos para o Mercosul.
A superação de qualquer desconfiança bélica é algo essencial. Uma vez, viajando pelo Rio Grande do Sul, reclamei das estradas e alguém me disse: “Não consertam pois querem dificultar uma possível invasão argentina”. Não sei se a tese é verdadeira, mas a burrice faz parte de um enfoque de rivalidade.
Diante de todo este processo histórico que superou barreiras, levou a uma coexistência e, finalmente, a uma cooperação, Milei é apenas uma pedra no caminho.
Ele falou mal do Brasil, da China e do papa. Mas isso significa, em relação aos países, algum abalo nas relações comerciais?
De novo, a História pode ser uma indicação. Durante a ditadura militar, os generais diziam que eram a vanguarda da luta continental contra o comunismo. No entanto, cerca de 80% da exportação de cereais argentinos destinavam-se à então União Soviética.
Milei diz que não negocia com a China. Os chineses emitiram uma nota saudando sua vitória e abrindo as portas para a cooperação. Se ele não compra produtos chineses, tudo bem. Basta buscá-los numa loja de mercadorias americanas ou de qualquer outra nacionalidade. Mas a economia argentina não pode dispensar as relações comerciais com a China e com o Brasil.
A alternativa que ele apresenta, EUA e Israel, não supriria essas lacunas no campo das transações comerciais. Ele é crítico de Joe Biden e deve observar que os EUA negociam com a China. Israel, por seu turno, está envolvido numa guerra contra o Hamas que consome grande parte de sua energia.
Não chego a concordar integralmente com um colunista argentino que disse “com a vitória de Massa, não passa nada; com a vitória de Milei, também não”. Massa representava a continuidade. Milei terá de conquistar o Congresso e, em alguns casos, convencer a Suprema Corte.
Milei terá, certamente, um repertório de surpresas. É arriscado dizer não passa nada. No entanto, conhecemos o roteiro de Bolsonaro no Brasil. Ele conquistou o Congresso com o orçamento secreto. Milei teria esse caminho e, se o tiver, haverá recursos para a conquista? Muitos movimentos de Bolsonaro morreram no Supremo Tribunal Federal, sobretudo os que dizem respeito à pandemia.
Todas essas observações não excluem acontecimentos pitorescos, pequenas loucuras que devem animar o noticiário cotidiano. Mas o movimento histórico de integração e o crescimento da amizade entre Brasil e Argentina não dependem diretamente da amizade de seus presidentes.
O momento é de excitação, mas o curso geral da história é de uma busca serena de saídas para tantos problemas: os do Brasil, apesar de sua relativa prosperidade, e os da Argentina, com seu longo inferno astral na economia.
Fernando Gabeira, escritor e jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/