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Mil dias rumo ao isolamento 

No momento em que o governo comemora mil dias e nós lamentamos a morte de 600 mil pessoas na pandemia, creio que a expressão isolamento define a trajetória de Bolsonaro.

Pode parecer inadequado falar de solidão nestes mil dias, sobretudo quando se mobiliza tanta gente como ele. Mas, se considerarmos o percurso de um presidente que se elegeu com 57 milhões de votos e hoje é rejeitado pela maioria, vemos como ele perdeu terreno, o que é pior, supondo que estava avançando.

Quando Bolsonaro se elegeu, havia uma visão crítica internacional baseada nas suas declarações sobre violência e suas posições machista e homofóbica. O tempo encarregou de transformar essa desconfiança numa certeza mundial. Em primeiro lugar, as posições negacionistas na pandemia e, logo em seguida, também com grande peso, uma política devastadora no meio ambiente.

A última performance internacional de Bolsonaro serviu para transformá-lo numa espécie de líder exótico, destes que figuram apenas nas piadas de apresentadores de tevê. Ele quebrou o código de honra da ONU que previa um encontro de líderes vacinados.

Quando Bolsonaro disse que sua vida era uma desgraça, que não podia sair nas ruas para tomar um caldo de cana, já expressava de certa forma o desconforto que marca seu percurso na Presidência.

Muitos analistas afirmam que Bolsonaro fala apenas para seu público e que não se importa com a maioria. Na verdade, seu público hoje é formado pela extrema-direita e grupos de seguidores fiéis que não têm condições de avaliar criticamente sua performance. Nesse sentido, pode-se dizer que Bolsonaro se isolou de seus eleitores, uma vez que foi vitorioso numa eleição majoritária.

Mas existe um tipo de isolamento não estudado em detalhes, exceto por pesquisadores mais voltados para a questão militar, como o antropólogo Celso Castro, autor do livro O Espírito Militar. Trata-se de uma pesquisa entre cadetes na Academia das Agulhas Negras e revela que existe entre os militares uma tendência a dividir o País entre fardados e paisanos. Os militares mais disciplinados, idealistas, tendem a ver os paisanos como individualistas e pouco confiáveis. Bolsonaro parece ter herdado esse espírito ao determinar que os militares ocupassem o governo e escolher um grupo de oficiais de alta patente para seus assessores mais próximos.

Grande parte de sua agenda é voltada para solenidades militares, mas o principal exemplo que revela essa tendência discriminatória é seu argumento para aceitar as urnas eletrônicas.

Como se sabe, Bolsonaro afirmou várias vezes que as eleições no Brasil são fraudadas, embora tenha sido vitorioso em inúmeras proporcionais e na majoritária, para presidente, em 2018.

Ele só aceitaria eleições limpas com a presença do voto impresso e auditável – como se as urnas eletrônicas não fossem auditáveis.

Derrotado no Congresso, Bolsonaro ainda resistiu na sua campanha contra as urnas eletrônicas. Só depois de algum tempo admitiu as eleições tal como serão realizadas, mas argumentou assim: agora confio porque as Forças Armadas vão fiscalizar.

As Forças Armadas sempre conheceram o processo eleitoral, a porta nunca esteve fechada para sua fiscalização. Bolsonaro usou sua presença como uma desculpa para racionalizar o recuo.

Mas é um tipo de desculpa que merece análise, pois ela pressupõe que, para Bolsonaro, a única instituição confiável são as Forças Armadas.

Nesse simples movimento, o processo de isolamento, que já é ululante em termos internacionais, aparece com toda a clareza na dimensão nacional: ao longo de todo este período, Bolsonaro preocupou-se apenas com a aproximação com os militares e com aqueles setores da sociedade que os acham os únicos capazes de dirigir o Brasil, de preferência com um viés ditatorial.

Candidato, Bolsonaro desfrutou de uma configuração favorável, inclusive com atentado a faca, que permitiu envolver a maioria da população.

Como candidato, Bolsonaro aproxima-se rapidamente daqueles grupos que fazem manifestação em porta de quartel, usam camisa amarela e acreditam que fazem história antes da macarronada de domingo.

Com urnas eletrônicas ou voto impresso, não importa que tipo de mecanismo, uma posição como esta de Bolsonaro e seus fiéis nunca será majoritária no Brasil.

As condições de 2018 não estão mais presentes. Desde quando assumiu o governo, Bolsonaro caminha decisivamente, inclusive estimulado pelos filhos, rumo à sua posição mais autêntica, mais inequivocamente minoritária. É um líder da extrema-direita e possivelmente seguirá assim, até que a própria corrente que representa chegar à conclusão de que pode dispor de alguém melhor que ele.

Nunca é possível fazer uma previsão política com exatidão. Mas os dias que restam de governo devem confirmar esta marcha de Bolsonaro para sua verdadeira estatura política.

Ao afirmar que sua vida era uma desgraça, estava próximo de uma descrição real, pois cair em desgraça, em termos políticos, é um sinônimo de isolamento.


Fernando Gabeira, jornalista e escritor

Fonte: https://www.estadao.com.br