Os resultados das eleições municipais de 2024 não indicam propriamente vitória nem da direita nem da esquerda. Na perspectiva do longo prazo cumprido desde o fim da ditadura militar, foi uma derrota da democracia.
Há algumas derrotas notórias e significativas, como a do PSDB, derrotado por si mesmo, pela ação e pela mentalidade de figuras distantes do ideário e da experiência do partido. No elenco das competências que lhe restam, há talentos que podem promover-lhe o renascimento, descartadas as figuras de infiltrados cujo perfil é outro, agora como adversário da direita destrutiva.
O declínio do PT, vencido em seus próprios redutos históricos, como na cidade de São Paulo, na zona leste, por um forasteiro de extrema direita. E no ABC Paulista, onde em apenas dois dos sete municípios resta-lhe aguardar o segundo turno para recuperar alguma presença no que vem deixando de ser a região industrial.
Esse cenário de declínios não diz respeito só às esquerdas, mas também à direita. O bolsonarismo, uma facção de grandes fragilidades, depende dos medos que os ditos evangélicos e a baixa classe média nutrem pelo que foi a esquerda dos tempos da União Soviética e do stalinismo, do confronto sangrento com o nazismo alemão. E que nada tem a ver com as esquerdas de hoje e menos ainda aqui no Brasil. Religiosos de fé mercenária babam ao denunciar esquerdistas como ateus, como ameaça à sua fé mediada pelo dinheiro.
Um conjunto imenso de estereótipos anticomunistas colocou o stalinismo no lugar do socialismo no imaginário do mundo inteiro, sobretudo com a participação dos setores americanos de repressão ao comunismo. Derrotar pela difamação na Guerra Fria, mas baratear a eventual necessidade de uma guerra quente. Idiotas do mundo inteiro, incapazes de perfilhar o pensamento politicamente crítico, foram arrastados para a oposição desinformada contra as esquerdas.
A direita bolsonarista, que se filia a essas anomalias ideológicas, foi profundamente atingida nesta eleição. Ela se dividiu. Os diversos episódios de conduta antidemocrática do próprio Bolsonaro e de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, a mentalidade golpista da direita dessa corrente, provocaram sua fragmentação.
As novas facções de direita são suficientemente lúcidas para saber que não precisam de golpe explícito para chegar ao poder nem precisam de Bolsonaro e dos despistados do seu cortejo, como ficou claro nesta eleição na cidade de São Paulo e na sua região metropolitana.
Embora Bolsonaro ainda seja um nome de uma fantasia autoritária residual, que arrecada votos, 2024 indicou que seu lugar no autoritarismo brasileiro está em queda e está sendo disputado internamente. Em São Paulo, disputaram a vitória Tarcísio, através do vacilante Nunes, e Marçal através de robôs. O falso atestado médico de Marçal na verdade atesta outra coisa. A direita está sendo corroída por dentro.
As eleições revelaram ainda a vitalidade de um difuso e arraigado direitismo brasileiro com cara de centro e mesmo de extremo centro. Refúgio da classe média arrivista e destituída de certezas e de convicções propriamente políticas.
As esquerdas, por seu lado, têm seu próprio atraso. Não foram derrotadas por serem esquerda, mas por atraso de consciência em relação ao que é a realidade social do país hoje em relação ao passado de sua origem.
Na região metropolitana de São Paulo, no indevidamente chamado cinturão vermelho, muitas transformações sociais ocorreram com sua inevitável consequência política.
Carlos Reichenbach, em agosto de 2004, um ano e meio após a chegada do PT ao poder, lançou o filme “Garotas do ABC”. Após os anos das grandes manifestações operárias no Estádio da Vila Euclides, lideradas por Lula, uma nova geração regional revela-se uma geração de direita, racista, preconceituosa e violenta, como no caso dos “carecas do ABC”.
Esta eleição de 2024 confirma que 20 anos depois da esquerda operária chegar ao poder, as inclinações autoritárias das populações que deram origem à classe operária revelam sua nova face de filhos da prosperidade pessoal, da sociedade de consumo, de uma nova alienação que já não é alienação proletária que legitima o trabalho assalariado e sua peculiar consciência das contradições sociais e que dão sentido às suas reivindicações laborais.
A situação social da classe operária mudou muito. A reestruturação produtiva, o desaparecimento das profissões operárias mais valorizadas, de que vieram suas lideranças políticas, a migração de empresas para regiões de reivindicações trabalhistas limitadas. As ruínas de fábricas ao longo da ferrovia nos dizem o que aconteceu com o eleitorado de esquerda.
José de Souza Martins, escritor e sociólogo brasileiro
Fonte: https://valor.globo.com