Um dos efeitos perversos da era digital é a volúpia com que tantos exploram a própria imagem, na vã tentativa de eternizar o que é finito. Nada contra a beleza. A estética tem conotações íntimas com a ética. Já chamei a ética de “estética da alma”. Porém, nestes tempos de fanatismo e excesso, cumpre lembrar a sabedoria helênica: a virtude está na moderação.
Os gregos também nos ensinaram o caminho da contenção: nada em excesso. Nos mostraram que o essencial é investir no “conhece-te a ti mesmo” e que somos frágeis e efêmeros: “Só sei que nada sei!”.
Verdades que a humanidade vai esquecendo, negligenciando o cultivo da humildade, a mais modesta e fraca dentre as virtudes.
A mensagem cristã, que atingiu dois terços do planeta, não é outra. Cristo foi uma pessoa humilde, nascida em lar humilde, levando uma vida humilde. Seus ensinamentos perduram e seus seguidores também nos legaram lições atemporais. Detenho-me no livro do Apocalipse de João, 3-17 e leio: “Pois dizes: estou rico e abastado, e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu”.
Não foi isso o que a pandemia evidenciou nestes meses angustiantes em que perdemos duzentos mil brasileiros e milhões de seres humanos em todo o cada vez menor planeta Terra?
A peste preferiu os idosos, aqueles com alguma comorbidade, como se estivesse a dizer: livraremos o mundo do “peso morto”, na filosofia vigente. Afinal, vale o que é jovem, produtivo, eficiente, belo e poderoso. Aquela faixa que já não tem muito a oferecer, na vertente materialista, pode desocupar espaço, cada vez mais exíguo, depois que a demografia foi inflando as cidades e exaurindo os recursos naturais.
Ocorre que, não satisfeita com dizimar a faixa dos frágeis, a praga voltou – ou apenas continuou? – agora a contaminar jovens, atletas, saudáveis, crianças, pessoas que se consideravam invulneráveis.
Será que ninguém lê a mensagem explícita da pandemia?
Escancarou-se a debilidade do ser humano, a pretensiosa criatura que se considera a única racional, aquela que procura, com sua dogmática, ser mais inflexível e rígida do que Deus. Aquela que tem a coragem de se comparar em imagem e semelhança a Ele. Não adiantou esse recado para uma utópica e milagrosa conversão desse coletivo irado, a semear discórdia e ódio, a explorar as dissenções e a procurar derrubar o próximo a qualquer custo? Houve arrefecimento da vaidade, do exibicionismo, do narcisismo?
Há quem acredite numa nova etapa humana quando a Covid19 vier a ser debelada. O que ainda parece distante. Mas há também aqueles que disso duvidam. Quando se vê a mediocridade das discussões, o espaço dedicado a superficialidades, a continuidade do uso criminoso dos escassos recursos do povo, a perseverança na prática do mal, é difícil manter forte a crença na superioridade de propósitos dos homens.
Os sinais apocalípticos são perceptíveis. Já vinham surgindo inimizades, rupturas, ressentimentos, traições, maledicências, uma onda maldosa a impregnar o convívio. Nada parece ter obstado a continuidade das malevolências ínsitas à miséria humana. Leia-se no livro do Apocalipse de João, 22,11: “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça e o santo continue a santificar-se”.
As Escrituras dão vários exemplos de que fora suficiente a existência e perseverança de um justo, para aplacar a ira divina. Será que diante da estrondosa inflação de injustos, a proporção ainda será suficiente para salvar a humanidade?
Como seria importante que esta fase de terror acarretasse mudança de hábitos. Que todos pensassem menos em si e mais no desvalido. Tivessem noção de que poder, dinheiro, fama, imagem e qualquer outro valor posto no ápice de nossa hierarquia axiológica de nada valem, diante de um inimigo ainda onipotente e imponderável. Onde vão parar vaidade e orgulho, diante da impotência face à praga?
A humanidade precisa ser educada para a humildade pura, não aquela hipócrita, análoga à falsa modéstia. Atente-se para o que Chesterton, o polêmico pensador, assinalou a respeito da educação: “Educar é dar algo – talvez veneno. Educação é tradição, e tradição (como o nome indica) pode ser traição”.
Não haverá doses de veneno na educação que só enfoca a competição, a conquista do dinheiro e de posições e relega a virtude para a arqueologia de tempos idos?
O mundo precisa de uma educação ética, solidária e virtuosa. Aquilo que Chesterton chamou de “educação perpétua”: “Eis a educação perpétua: ter suficiente certeza de que algo é verdadeiro, a ponto de chegar à ousadia de contá-lo a uma criança”.
Qual a verdade que estamos contando às nossas crianças?
José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2019-2020