No mês que vem, o golpe de 1964 faz 60 anos. Muita água passou pela ponte. Um dos instrumentos mais sinistros do período militar era o Serviço Nacional de Informações (SNI), uma polícia política cujo objetivo principal era vigiar os passos dos opositores do governo.
Com a redemocratização, o SNI foi extinto. Em tese, acabou a história de polícia política. Em seu lugar, haveria uma agência de informações destinada a produzir análises para as decisões estratégicas do governo. Soa bonito. No entanto, embora tenhamos superado o SNI, nunca chegamos realmente a dar importância aos grandes temas estratégicos.
O escândalo que estourou agora mostra como o governo Bolsonaro fez o serviço de inteligência regredir para muito próximo do período militar. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) bisbilhotava a vida de oponentes políticos e aliados sob suspeita. Ainda funcionava como babá dos filhos do ex-presidente. Para um deles, Flávio, chegou a elaborar uma defesa no processo das rachadinhas.
Tudo isso é muito grave, será apurado e dará algumas manchetes de jornal. No entanto Bolsonaro é o maior, mas não o único, culpado pela forte regressão.
Será que os presidentes do Brasil democrático fizeram realmente uso das análises da agência? Será que, na qualidade de consumidores, conseguiram apontar erros e impulsionar um progresso na coleta e formulação do material de análise? Da mesma forma, existe no Congresso uma comissão mista destinada a fiscalizar as atividades de inteligência. Será que funcionou mesmo?
Olhando para trás, lembro-me de episódios que escaparam à agência porque eram difíceis de conhecer, como o monitoramento do telefone de Dilma pelos americanos. Recentemente, outro fato difícil, mas constrangedor, foi revelado: havia tráfico de drogas para a Europa nos aviões da comitiva presidencial de Bolsonaro.
Se pudesse pautar a agência, creio que um bom deputado teria essa possibilidade, levantaria alguns temas que escapam. Estamos levando uma surra na tentativa de dominar o garimpo ilegal nas terras ianomâmis. Os militares venezuelanos exploram o garimpo do lado de lá, uma vez que os ianomâmis vivem nos dois países. Qual o verdadeiro quadro, o que fazer para negociar com Maduro e obter resultados dos dois lados da fronteira?
Recentemente, no Equador, ficou evidente a ligação dos cartéis mexicanos com o crime organizado, indicando que há uma associação forte também com Colômbia e Peru. Até que ponto isso nos atinge, o que fazer?
Como esses, poderia enunciar uma dezena de temas estratégicos que poderiam iluminar a ação presidencial. Mas, pela situação da agência, não parece que já se comemora o aniversário de 60 anos do golpe. Os acontecimentos do 8 de Janeiro foram uma espécie de elefante invisível, embora a agência tenha dito que sabia. Verdade é que Lula não sabia, e eles deveriam ter contado a ele.
Se a agência superou realmente o estágio de polícia política, por que comprou o First Mile, ferramenta israelense para monitorar telefones pessoais? Se desde o fim da ditadura, por determinação constitucional, isso não é sua tarefa, por que manter o instrumento a partir de 2021, atravessando o governo Bolsonaro e o primeiro ano de Lula? Será que não existe uma espécie de chefe do almoxarifado que vê esse instrumento que custou R$ 5,7 milhões e decide enviá-lo para onde possa ser usado?
É tudo muito esquisito, inclusive o fato de o computador da agência estar em poder de gente que não trabalhava mais lá, como é o caso de Alexandre Ramagem.
A transformação de polícia política em serviço de inteligência é um passo que não depende apenas de um decreto. É preciso amadurecimento geral. Quem sabe agora, 60 anos depois do golpe, a gente possa dar o passo sonhado lá atrás?
Fernando Gabeira, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/