O trabalho exemplar de investigação da Polícia Federal (PF) que desbaratou a intentona bolsonarista tem caráter histórico. Desde o fim da ditadura, não há registro de acusação maior de traição à vontade do povo. Felizmente, diante da ameaça, o contra-ataque das instituições foi certeiro, sinal de maturidade democrática do Brasil. Nos momentos críticos, os comandos do Exército e da Aeronáutica foram fiéis à Constituição. Depois de dois anos de investigação, a PF indiciou 12 civis e 25 militares acusados de tramar contra a democracia, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro, os ex-ministros Braga Netto (Defesa e Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Anderson Torres (Justiça) e o ex-comandante da Marinha Almir Garnier. É algo inédito em todo o período republicano. Dada a gravidade das evidências, era a única resposta digna.
Na terça-feira, a PF prendeu quatro militares do Exército e um policial federal acusados de planejar uma operação para matar, em dezembro de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes. O general Mário Fernandes, um dos presos, imprimiu o plano no Palácio do Planalto, depois encontrou Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Para a PF, são indícios de que o ex-presidente estava por dentro da conspiração golpista.
Na mesma época, Bolsonaro reuniu os comandantes das Forças Armadas. Em depoimento, os então chefes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Júnior, afirmaram que ele lhes apresentou versões de minutas golpistas e que se negaram a endossar a ruptura. De acordo com os relatos, Garnier, na época chefe da Marinha, apoiou o plano. Em novo depoimento nesta semana, o ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid reafirmou que Bolsonaro sugeriu alterações num dos documentos golpistas.
Segundo a PF, a casa de Braga Netto foi palco de encontro para discutir o assassinato de Lula, Alckmin e Moraes. Quatro meses antes, ele participara de reunião com Bolsonaro para debater estratégias de ataque ao processo eleitoral. Heleno afirmou em conversa gravada no Planalto que a virada de mesa deveria ocorrer antes das eleições. “Nós vamos ter que agir”, disse. Ainda segundo a PF, Braga Netto e Heleno formariam um “gabinete de crise” para tomar o poder depois dos assassinatos. O general Nogueira, dizem as investigações, participou de discussões sobre a minuta golpista e atuou para desacreditar as urnas eletrônicas. Torres tinha em casa outra minuta golpista.
Caberá à Procuradoria-Geral da República decidir se pedirá novas investigações e se oferecerá denúncias. Algumas dúvidas na trama ainda precisam ser dirimidas. A principal é o grau de envolvimento de Bolsonaro. Ele sabia do plano dos assassinatos? Negou-se a ir adiante com o golpe porque o comando do Exército resistiu ou porque não quis “sair das quatro linhas”, como insistem os bolsonaristas? O que exatamente foi decidido na reunião na casa de Braga Netto? Por que a operação dos assassinatos foi abortada? Diante de fatos tão graves, não faz sentido que a íntegra do inquérito continue em sigilo. Ela precisa vir a público quanto antes. Não pode pairar nenhuma dúvida sobre as acusações, para que os golpistas sejam julgados e punidos à altura.
Editorial do jornal O Globo de 23.11.2024
Fonte: https://oglobo.globo.com/