Em 24 de janeiro de 2022, no “cercadinho” do Palácio da Alvorada, Hadassa Gomes, de 19 anos, de Sorocaba, perguntou ao então presidente Jair Bolsonaro: “Presidente, posso falar um verso bíblico para o senhor?”. Tornara-se comum a ida de evangélicos ao cercado para orar com ele ou ler para ele um trecho da Bíblia.
“É aquele verso que você gosta muito e eu também. É um dos meus favoritos: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. E a verdade é Jesus, a verdade é a justiça, a verdade é a honestidade. E sabendo disso, dá para considerar que o senhor é uma farsa, presidente, por um acaso.”
O diálogo que se seguiu demonstrou as referências limitadas de interlocução do presidente. “Você veio aqui para falar isso?” “Sim”, respondeu ela: “Aquele que crê na Bíblia também questiona”. Ao que ele retrucou: “Você usa a palavra de Deus para chegar a mim e vem com essa mentira?”. E Hadassa esclarece os fundamentos de seu direito de questioná-lo: “O senhor não é Deus presidente”. Alguém, do grupo do cercadinho, retruca: “É sim...”
Bolsonaro acusou-a de ser petista. “Fica quieta, vai. Tira ela daqui, vai.” Ela filmara a conversa com o celular. Os seguranças retiraram-lhe o aparelho e tentaram encontrar a filmagem. Ela, porém, já havia feito o envio por WhatsApp.
Ela não era petista. Aos 13 anos tornara-se admiradora de Bolsonaro, que questionava a legitimidade do sistema político, e com isso ela se identificava porque considerava suja a política. Passou pelo MBL, bolsonarista, e teve simpatia por Sergio Moro quando começou o desencanto com Bolsonaro em função das atitudes do governo em relação à covid-19 e à vacina. Perdera amigos e conhecidos para a doença.
Quem tem ou teve formação evangélica identifica imediatamente a citação isolada e descontextualizada do então presidente, usada como adorno de um discurso completamente não evangélico, desvinculado dos valores bíblicos do cristianismo, e é imediatamente induzido a desconstruir o discurso para decifrá-lo.
Escolhi esse caso como referência desta análise para propor uma compreensão sociológica de várias ocorrências desconstrutivas no caso do bolsonarismo e propor um entendimento da peculiaridade anômala do processo político brasileiro.
Nestes últimos dias, a PF revelou a gravação de uma reunião da clandestina Abin paralela de que participou Bolsonaro. Foi feita secretamente por um amigo do então presidente. Era para definir a proteção a seu filho acusado de promover as rachadinhas.
Os Bolsonaros constituem um caso muito raro no Brasil que é o de um conjunto familiar estar no poder, o chamado clã. Eles não são o que na sociologia se chama de grupo apenas de referência. Eles constituem um grupo orgânico, um sujeito político em si, anômalo, diverso do sujeito constitucional da cidadania, que é o indivíduo. O mandato de Bolsonaro terminou, mas ele continua no poder, no Senado, na Câmara dos Deputados, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, através dos filhos. Ele se tornou um ente antipolítico na política.
A mídia já comenta que os filhos e a esposa disputarão a representação de quatro a cinco unidades da federação no Senado em mandatos de 8 anos, nas eleições de 2006. Objetivo: a anistia do pai.
O chamado bolsonarismo tem características reveladoras do que é de fato a peculiar política do Brasil, que são do maior interesse sociológico, como objeto de estudo. Mas não são características que se expressem nas pesquisas de opinião eleitoral, que mostram aspectos importantes da política, mas não revelam o essencial, o invisível do processo político.
No entanto, os Bolsonaros, como sujeitos políticos, multiplicam suas incoerências desconstrutivas. É o que decorrerá do que aconteceu em Camboriú no chamado encontro “conservador” com o presidente da Argentina. A ele, visitante, na frente do ex-presidente, um filho deste ofereceu no dia 7 de julho a medalha “triple-i” - “imorrível, imbrochável e incomível”, ilustrando-o com um gesto obsceno.
Na suposta identificação dos evangélicos com Bolsonaro e o bolsonarismo, não há como os evangélicos não cobrarem esclarecimentos dos pastores, capelães da família e, ilegalmente, do Estado durante o mandato e da bancada evangélica sobre qual é o lugar da obscenidade em sua consciência religiosa.
A sociedade é relacional e há nela uma significativa dimensão invisível e silenciosa, base da consciência social. O que parece fragmentado e separado - religião, política, economia - está a ela unido, é a consciência do sujeito e não do objeto de manipulação, consciência questionadora, rebelde, como no caso de Hadassa. É o que explica a antropologia inspirada em Antonio Gramsci.
José de Souza Martins, escritor e sociólogo brasileiro
Fonte: https://valor.globo.com/