Num sinal de enfraquecimento da democracia, nesta segunda década do século XXI patrocinadores de golpes de Estado já não pedem desculpas. Exibem seu feito sem remorso – forma de deixar clara a disposição de fazer tudo outra vez.
Foi assim que, ao ler no twitter uma crítica a atuação de sua empresa na queda do governo Evo Morales, na Bolívia, o bilionário Elon Musk (foto), executivo da Tesla, um dos gigantes de tecnologia do planeta, reagiu em tom de ameaça. Afirmou que é capaz de “dar golpe em quem quiser”.
Para deixar claro que não vê motivo para mudar de atitude, ainda acrescentou: “Lidem com isso”, com arrogância típica de quem está pouco ligando para possíveis consequências – políticas e diplomáticas – de uma confissão com tamanha gravidade.
Ninguém irá negar a presença de interesses imperiais em golpes de Estado ocorridos na América do Sul, inclusive em países de maior peso geopolítico – como no Brasil de João Goulart e Dilma Rousseff, na Argentina peronista, no Chile de Salvador Allende, para ficar em casos clássicos.
Na Bolívia, onde um golpe militar derrubou o Juan José Torres e fechou a Assembléia Popular, em 1971, o governo foi assumido por Hugo Banzer, oficial de ideias fascistas e declarado respaldo norte-americano, atraído por outra riqueza mineral do país – as reservas de estanho.
Mesmo alimentado por uma grande hipocrisia, o respeito à autonomia dos povos, que está na base da diplomacia e do convívio civilizado entre os povos, impedia manifestações de tamanho descaramento. Não mais – mostra Elon Musk.
Matéria prima das baterias de automóveis e também de aparelhos celulares, as reservas de lítio boliviano, entre as maiores do mundo, estavam na base do projeto econômico do governo Evo Morales, derrubado quando sua reeleição representava a continuidade de um programa de desenvolvimento autônomo, capaz de beneficiar uma população historicamente excluída.
Nomeada presidente após o golpe, candidata numa eleição presidencial já adiada duas vezes, a senadora Jeanine Añez formou uma chapa onde o candidato a vice Samuel Doria Medina, faz campanha como testa-de-ferro da Tesla e propõe abrir o país para a empresa de Elon Musk explorar diretamente as reservas de lítio.
A Bolívia de hoje até parece uma fábula colonial da qual todos conhecem o desfecho mas a história pode produzir novas surpresas.
Em eleição marcada para 18 de outubro, o economista Luiz Arce, candidato do MAS, partido de Evo Morales, aparece como favorito absoluto. Apesar da tradição golpista e da eterna arrogância imperial, nesta conjuntura precisa a vontade da Casa Branca não é garantia absoluta.
Personagem indispensável para intervenções desse vulto, na segunda quinzena de outubro Donald Trump estará ocupado demais com a própria sobrevivência diante de Joe Biden, quem sabe impedido de prestar o auxílio que Elon Musk e sua turma gostariam.
Alguma dúvida?
Paulo Moreira Leite é jornalista, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA
Fonte: https://www.brasil247.com