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Imigrantes, os inimigos

Imigrantes, os inimigos

Vivemos uma época estranha, e sinto-me muito envolvido nela para compreendê-la. Tenho algumas intuições, levanto hipóteses, mas simplesmente vou vivendo na esperança de um dia olhar para trás e dizer com calma:

— Foi assim.

Durante a semana, andei lendo sobre o cotidiano em Gaza durante o precário cessar-fogo. As pessoas vivem nos escombros, sem condições higiênicas, e há o frio que matou sete bebês de hipotermia. Quando terminei minha pesquisa, a guerra recomeçou, e o bombardeio matou 400 pessoas.

Na mesma semana, assisti ao filme “O aprendiz”, que conta a história de Donald Trump. Biografias às vezes exageram, mas, de qualquer forma, custa acreditar que ele tenha se tornado presidente dos Estados Unidos duas vezes. As lições que aprendeu com o advogado Roy Cohn talvez ajudassem a ganhar dinheiro, mas não parecem úteis para um estadista: atacar sempre, considerar a verdade algo relativo e nunca admitir uma derrota.

A mesma dureza que aplicava aos pobres inquilinos de seus prédios, transfere agora aos imigrantes. Pessoas são diariamente presas; mulheres, separadas de maridos americanos; pais, de filhos. Há hostilidade nas ruas. A ida dos venezuelanos para El Salvador —que os manterá na prisão a um custo de US$ 6 milhões — foi um espetáculo repressivo. Os presos são forçados a andar curvados, as cabeças raspadas diante das câmeras.

Tudo isso acabou me dando uma ligeira ideia dos tempos em que vivemos, sobretudo ao ler no New York Times o artigo de uma pessoa trans. Ela fala com clareza que o processo de negação de sua humanidade se parece com o que se passou com judeus, ciganos e gays no III Reich. É preciso destituí-los de todos os direitos para desaparecer com eles.

Há diferenças entre aquele período e o que se passa agora nos Estados Unidos. Mas há também algumas semelhanças, que nos lembram o suicídio de pessoas sensíveis, como o escritor Walter Benjamin, que tentava cruzar a fronteira da França com a Espanha, em fuga do nazismo.

Ao ler o artigo no Times, senti um amargor estranho, que havia sentido naquele momento da Guerra das Malvinas diante das fotos de navios envoltos em brumas num mar revolto. São períodos em que as notícias cotidianas nos deixam tristes. De certa forma, tento olhar com esperança. A Segunda Guerra e todos os seus horrores acabaram despertando algumas reações valiosas para que pudéssemos continuar a aventura humana.

Na França, o existencialismo ganhou importância não com só com filósofos (Sartre, Simone), mas também com artistas como Juliette Gréco. Em Frankfurt, uma nova escola de pensamento mergulhou não apenas na mente germânica, mas produziu conhecimentos universais: Marcuse, Erich Fromm, Adorno, Horkheimer, Habermas ocuparam a cena para reinterpretar a realidade.

Minha esperança é que possamos sair deste momento com novas ideias, aprendendo um pouco mais sobre os seres humanos, como aprendemos com os descaminhos do povo alemão. Hitler tinha apoio popular. Guardadas as proporções, Donald Trump também galvaniza apoio popular. A hostilidade aos estrangeiros se espalha entre pessoas simples, que buscam explicações para suas dificuldades.

Sou neto de imigrantes. Sempre pensei nos avós como gente com uma mão na frente e outra atrás, na pobreza, que trabalhou arduamente para cavar seu caminho e garantir a sobrevivência. Jamais imaginei que imigrantes fossem perseguidos como criminosos, apenas por buscar uma oportunidade num novo país. É possível superar essa tendência humana para criar bodes expiatórios? O que é preciso aprender, o que é preciso ensinar para darmos esse passo histórico?

Não tenho respostas a essas questões. Sei que foram levantadas noutras épocas e que precisamos viver este momento trágico, mas tentar respondê-las à nossa maneira, em nosso tempo de vida.

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

Fonte: https://oglobo.globo.com/