A democracia americana balançou no último sábado quando um atirador disparou contra a cabeça de Donald Trump durante um comício, gerando uma tempestade de teorias conspiratórias e ameaças de mais violência. Duas hashtags rapidamente se tornaram os assuntos mais comentados nas mídias sociais, destacando os riscos que um episódio de violência política como esse pode trazer num cenário de polarização crescente.
Poucos minutos depois dos disparos, a expressão staged (armado/encenado) já estava entre os tópicos mais discutidos no X. Postagem após postagem especulavam sobre que forças ocultas estariam por trás do atentado suspeito. A discussão girava em torno das falhas graves do serviço secreto e da polícia, que, supostamente alertados sobre a presença do atirador, demoraram a agir. Também foi considerada suspeita a rapidez com que Trump se recompôs e “posou” para a famosa foto produzida pela agência Reuters, em que aparece com o punho erguido, cercado por seguranças, sob uma bandeira americana tremulando.
Na esquerda, a teoria conspiratória dominante sustenta que o atentado foi encenado para martirizar Trump e mostrar um ex-presidente forte e resiliente, em contraste com Joe Biden, visto como frágil devido à idade avançada. No lado republicano, também há teorias conspiratórias, a maioria sugerindo que a segurança oferecida pelo serviço secreto foi deliberadamente negligente para facilitar a ação do atirador. Uma pesquisa da consultoria Morning Consult, publicada na terça-feira, mostrou que 33% dos americanos que planejam votar em Biden consideram o atentado uma encenação sem a intenção de matar Trump.
A onda de desinformação nos Estados Unidos teve desdobramentos no Brasil, com vários políticos e líderes de esquerda ressuscitando a tese de que a facada em Bolsonaro foi armação. Segundo eles, Trump copiou a estratégia. O deputado André Janones, o ex-ministro Ricardo Berzoini e a deputada Luiza Erundina lançaram suspeitas sobre a veracidade do atentado, sugerindo que era tão falso quanto teria sido a facada em Bolsonaro.
Embora o pensamento conspiratório seja frequentemente associado à direita, está também presente na esquerda, como mostra a persistente suspeita de que a facada em Bolsonaro não foi real. Até o presidente Lula já mostrou partilhar essa descrença.
Outra expressão reveladora se tornou um dos assuntos mais discutidos nas mídias sociais: civil war (guerra civil). Análises mostraram que o atirador foi preciso e que Trump só se salvou por ter feito um movimento brusco de cabeça. Podemos especular sobre o que poderia ter acontecido aos Estados Unidos se ele tivesse acertado o alvo. Não seria improvável pensar que apoiadores mais radicais de Trump reagiriam com mais violência, culpando diretamente os democratas ou a retórica democrata pelo assassinato.
Em outubro do ano passado, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa da Religião Pública mostrou que 23% dos americanos concordam que “as coisas saíram tanto do controle que os verdadeiros patriotas precisam usar de violência para salvar o país”. Entre os eleitores do Partido Republicano, de Trump, o apoio à afirmação é de 33%. A situação não é melhor por aqui. Uma pesquisa solicitada pelo meu grupo de pesquisa na USP à Quaest, durante o período eleitoral de 2022, mostrou que 20% dos eleitores brasileiros consideravam justificado o uso de violência se o candidato adversário vencesse as eleições.
Um levantamento da agência de notícias Reuters, baseado em dados de uma ONG, revelou aumento expressivo nos episódios de violência política nos Estados Unidos depois da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Segundo a reportagem, a onda de violência política é ainda maior que a dos anos 1970, quando o país enfrentou uma série de atos terroristas perpetrados por grupos de esquerda.
Alguns militantes acreditam que a polarização política é positiva porque exacerba os conflitos sociais e aponta para um futuro em que as forças adversárias nocivas serão completamente liquidadas. O que vemos se delinear, porém, não é um futuro redentor, mas a normalização de formas conspiratórias de pensar e episódios cada vez mais graves de violência política. O erro do atirador, por 1 centímetro, deveria funcionar como um alerta. Não sabemos o que poderá acontecer da próxima vez.
Pablo Ortellado, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/