Pensadores teleológicos são aqueles que imaginam o futuro exatamente como querem que ele seja. Creem que a sociedade humana vai evoluir precisamente no sentido de seus próprios valores e desejos. Concebem o futuro como progresso, ou seja, como uma inexorável aproximação da coletividade ao padrão que eles mesmos visualizam como superior, mais ético, mais feliz – e por aí afora.
Desde o século 19, os grandes teleólogos foram Karl Marx e Augusto Comte. O progresso marxista levaria à sociedade sem as desigualdades de classe do capitalismo e na qual o Estado, por falta de função, perderia seu caráter coercitivo. Augusto Comte postulou três fases. Na primeira, perdida nas trevas de um passado longínquo, a vida humana era regida tão somente por superstições. Na segunda, ainda não de todo superada, somos ainda em parte escravos de especulações filosóficas (metafísicas). A terceira, superior, será a era da positividade, ou seja, um tempo em que a humanidade se organizará com base numa pura racionalidade, científica e técnica. Uma das consequências dessa elucubração foi acirrar o desentendimento com o islamismo, que postula justamente o oposto.
Os apontamentos acima parecem-me sobremaneira oportunos neste momento, não porque as utopias de Marx e Comte estejam se realizando, mas, ao contrário, porque estão sendo acachapantemente contraditadas. O marxismo levou aos totalitarismos russo e chinês. Na Rússia, dias atrás, morreu, em circunstâncias mais que duvidosas, o principal opositor do presidente Vladimir Putin, cuja mentalidade conserva os densos ensinamentos que deve ter recebido como graduado oficial da KGB, a polícia secreta soviética. Alexei Navalni não foi o primeiro e, com certeza, não será o último. Tudo isso acontece ao mesmo tempo que Putin conduz uma guerra de agressão contra a Ucrânia, reeditando a peça encenada por Stalin no inverno de 1932-1933, quando ocupou a mesma Ucrânia com o objetivo de confiscarlhe todo o trigo, genocídio que se tornou conhecido pelo termo ucraniano holodomor, que significa deixar morrer de fome.
Na China, o todo-poderoso Xi Jinping dá mostras de que cedo ou tarde embarcará numa aventura militar contra Taiwan, mesmo sabendo que as consequências econômicas e militares disso serão catastróficas não só para seu próprio país e para Taiwan, mas para todo o mundo. É o que se pode depreender da produção de armas, que ele retomou num ritmo que poucos anos atrás ninguém avaliaria como plausível. Jinping não deve saber (ou, ao contrário, age como age exatamente porque sabe) que Taiwan é hoje uma democracia exemplar e uma potência tecnológica, maior fornecedora mundial de microchips de alta qualidade.
Inverter simplesmente nossas teleologias e idealizar o passado seria imperdoável ingenuidade, mas há um fato indiscutível, que é essencial ressaltar. Um caso absolutamente claro de rejeição ao exercício do poder por um só homem ou ao arrepio das leis foi a primeira fase da antiga Roma, ou seja, o período designado como republicano, iniciado em 509 a.C. Rejeição peremptória, consciente, cujo simbolismo se faria sentir cinco séculos mais tarde, na transição para o Império. Ao vencer a guerra civil decorrente de Júlio César, cruzando ilegalmente o Rubicão e tentando fazer-se coroar imperador, Octaviano recusou todos os títulos que sugerissem realeza, fazendo-se tratar apenas como princeps – ou seja, príncipe, ou primeiro entre iguais.
O que distinguiu os plebeus, num processo iniciado já na segunda década da República (494 a.C.), foi sua espantosa capacidade de organização política. Subjugados por dívidas e por várias formas de opressão, uma parte deles retirou-se para uma das colinas da cidade, desconsiderando as punições que disso lhes pudessem advir, criaram uma assembleia – o concilium plebis – e escolheram seus próprios magistrados, os tribunos da plebe. Foi por meio de um juramento solene (a lex sacrata) que o corpo coletivo dos plebeus se constituiu. Juraram protegê-los contra qualquer um que tentasse oprimi-los. Ou seja, sua força não decorreu de qualquer estipulação ou documento com força de lei, mas de sua solidariedade coletiva, fato que os patrícios foram progressivamente forçados a reconhecer como um traço fundamental na estrutura política da cidade. Com o passar do tempo, esse poder configurou-se como o intercessio, ou seja, o poder de interpelar o próprio Senado em decisões que os tribunos entendessem como prejudiciais a seus interesses e dos plebeus, por exemplo no tocante a dívidas (que, no limite, podiam colocá-los em condição servil) e uma distribuição mais equitativa dos recursos econômicos, notadamente a terra, uma fonte de incessantes tensões na história romana.
A primeira parte destes apontamentos indica a demência subjacente aos regimes totalitários. A segunda fala da democracia na antiguidade romana. Como construir a estrutura institucional de uma democracia para as condições modernas o Brasil parcialmente já aprendeu. Falta aprimorá-la e aprender a fazê-la funcionar.
Bolívar Lamounier, Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Fonte: https://www.estadao.com.br/