A cada nova casa avançada pelos que intentam questionar o resultado das eleições, o lugar-comum ouvido entre políticos, juízes, advogados e analistas políticos é: Esquece, isso não vai dar em nada.
Mas já deu em muita coisa, e parece haver pouca consciência por parte de todos esses segmentos do grau de radicalização operado pelo bolsonarismo não mais nas franjas da extrema direita, mas em amplos espectros da sociedade.
Há quase um mês, centenas de pessoas estão nas ruas desempenhando um ritual entre bizarro e francamente criminoso, que vai de apelos pueris a extra-terrestres a atentados terroristas contra concessionárias de rodovias.
Com exceção do Judiciário, todos os demais responsáveis por preservar o Estado Democrático de Direito de acordo com a Constituição tocam a bola de lado, ora se omitindo, ora fingindo trabalhar. É o caso da Procuradoria-Geral da República, da aparelhada Polícia Rodoviária Federal e do Congresso, cujos líderes até aqui não deram uma única palavra sobre a escalada golpista em curso.
Além das manifestações antidemocráticas mantidas à custa de incentivos explícitos e velados de Jair Bolsonaro e aliados e de financiamentos escusos, há ações efetivas para tumultuar a transição e tentar instaurar um clima de anormalidade que justifique alguma medida extrema — aliás, a cantilena desfiada pelos pseudodemocratas.
A representação do PL, com argumentos capengas e francamente inventados para dar uma narrativa aos golpistas, é uma dessas iniciativas. Não pode ser tratada na base da piada, do meme ou do “esquece, não vai dar em nada”.
É de extrema gravidade que o partido do presidente da República tente melar as eleições em que obteve seu melhor desempenho, elegeu a maior bancada da Câmara e a maioria de cadeiras em disputa no Senado.
É preciso que Valdemar Costa Neto, os responsáveis pela “auditoria” sem parâmetros técnicos e os ideólogos dessa farsa sejam incluídos no inquérito das fake news, o único instrumento de que a democracia brasileira dispõe no momento para fazer frente a um avanço orquestrado, violento e que conta com entusiastas instalados em instituições de Estado, das Forças Armadas ao Executivo, passando pelos órgãos de controle.
Justamente porque se tornou a última trincheira diante das pretensões golpistas, Alexandre de Moraes está superexposto. Sua coragem de exercer o que diz a Constituição na proteção do Estado Democrático serve de escusa para os demais que deveriam reforçar a defesa dos portões da democracia contra a tentativa de invasão dos bárbaros.
A omissão pode ser personificada na figura de Augusto Aras, mas não só. Os presidentes da Câmara e do Senado, os presidentes dos demais partidos e todos os que foram eleitos pelas urnas, que se tentam sem provas colocar em xeque, têm o dever de se levantar contra a farsa encenada por Costa Neto.
As pessoas próximas a esse habitué dos episódios mais deletérios da política nacional tentam amenizar sua atitude dizendo que ele foi “muito pressionado” por Bolsonaro. Pouco importa. Tanto um quanto o outro têm de responder pela tentativa de melar as eleições.
Nos Estados Unidos, Donald Trump passou a ser investigado por conspiração e insurreição por um comitê do Congresso tanto por tramar o questionamento da lisura das eleições quanto por, ao não combater as manifestações violentas paulatinamente orquestradas, contribuir para os eventos que resultaram nas mortes na invasão do Capitólio. Atualmente, ele recorre à Suprema Corte para tentar evitar um depoimento para o qual foi convocado em outubro.
É preciso que o Judiciário, os congressistas, a imprensa e os juristas brasileiros se debrucem sobre as minúcias desse processo, porque o passo a passo golpista de Trump vem sendo diligentemente seguido por Bolsonaro e seus satélites.
Vera Magalhães, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com