A vida costuma dar muitas voltas para, no fim, acabar voltando ao mesmo lugar.
Pensei nisso esta semana enquanto almoçava um frango caipira no molho com macarrão, na calçada do boteco da esquina de casa, ao lado da mesa do jogo do bicho.
Faz 55 anos que esta rotina se repetia todas as quintas-feiras, dia de fechamento da Gazeta de Santo Amaro, onde comecei minha carreira de repórter.
Ao final do almoço, arriscava uma fezinha, mas depois perdi o costume e só agora voltei a jogar no bicho.
Voltei ao meu início, quando também não tinha carteira assinada e muitas vezes nosso salário era pago em espécie, nas permutas que o jornal fazia com os anunciantes.
Assim montei uma coleção de sapatos e camisas, embora às vezes não tivesse dinheiro para a condução (não havia vale-transporte).
A única diferença é que naquela época quem pagava a conta era o dono do jornal, meu amigo Armando da Silva Prado Neto. Agora, sou eu mesmo.
De resto, também não havia ainda vale-refeição, outro benefício que agora está desaparecendo. O patrão almoçava com a gente e fazia questão de pagar com dinheiro do próprio bolso.
À mesa do pé-sujo, ao lado da gráfica do Shopping News, na Vieira de Carvalho, onde o jornal semanal e gratuito era impresso, estavam os chefes de redação Antonio Treme e Fausto Camunha, jornalistas mais velhos, que me deram as primeiras lições, e mais dois ou três colegas que faziam a revisão dos textos.
Ali foi minha escola porque pude acompanhar todo o processo de produção do jornal, da pauta à rotativa.
Na sexta-feira, o jornal era afixado junto às bancas do centro de Santo Amaro e eu ficava ali espiando, com vontade de dizer que aquela matéria assinada com meu nome era minha.
Corria o inesquecível ano de 1964, um mês depois do golpe cívico-militar, mas não havia censura nem perseguição a jornalistas, ainda mais de jornais de bairro.
Posso dizer que começamos juntos: eu e o golpe.
De lá para cá, passei por todos os cargos e funções de uma redação, de estagiário do Estadão, a correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha e a diretor de redação de emissoras de TV.
Rodei por todo o Brasil várias vezes como repórter e, mais tarde, como assessor de imprensa do Lula nas campanhas presidenciais, até chegar com ele ao Palácio do Planalto como chefe da Secretaria de Imprensa e Divulgação, em 2003, cargo que acaba de ser extinto esta semana.
É como se estivesse assistindo a um filme rodando de trás para frente, e voltando para trás outra vez, em moto contínuo.
As imagens se embaralham na minha lembrança e tenho pavor só de pensar, ao ver tantos fardados em volta do ex-capitão presidente, que podemos viver toda aquela tragédia de novo.
A diferença é que eu tinha apenas 16 anos, era um sonhador, e não fazia a menor ideia do que viria pela frente, quando a ditadura se instalou e, agora, aos 71, muitos acidentes depois, o esqueleto já não me ajuda a correr atrás das notícias.
Apenas 34 anos após o fim da ditadura, nossa jovem e frágil democracia está novamente ameaçada.
Os militares de 1964, bem ou mal, pelo menos tinham um projeto de país, sabiam onde queriam chegar com o “Brasil Grande”, e defendiam a soberania nacional, enquanto torturavam os opositores nos porões de onde saíram os atuais donos do poder.
Agora só temos um projeto de destruição e entrega das riquezas nacionais na bacia das lamas, sob o comando de um celerado fora de controle e um bando de boçais do mesmo nível, que não fazem a menor ideia do que é governar um país do tamanho do Brasil.
Não dá nem para saber até quando será possível comer frango caipira no boteco da esquina por módicos 17 reais.
Só falta proibirem o jogo do bicho para acabar de vez com as esperanças.
Aí vai ter guerra…
Vida que segue.
Repórter desde 1964