Em meio ao pior momento da pandemia, o Brasil diz novamente para a favela: “Fique em casa”. Mas pouca gente se pergunta: que casa?
Eu respondo, leitor. O barraco na favela tem 15 metros quadrados, pouco mais, pouco menos. É construído com madeira catada na rua. O chão é de terra batida e uma lona faz as vezes de telhado. Mães, filhos e avós se espremem em um ou dois cômodos sem reboco.
“Fique em casa!” Mas que casa? Milhares de brasileiros vivem ao lado de um córrego fedorento, sem acesso a água encanada e esgoto. O banheiro se resume a uma fossa, um buraco cavado no chão.
Quando chove, a enchente leva embora o pouco que se pôde conquistar – uma geladeira, um colchão, algumas roupas. Outras tantas famílias estão empilhadas em beiras de encosta, rezando para que no próximo temporal um deslizamento não as soterre.
“Fique em casa”, sim, mas que casa? Tem gente que abre a geladeira e não vê nada além de água. Há quem coloque os filhos para dormir sem poder lhes oferecer nem um copo de leite. Dormir, aliás, pelo menos engana a fome. Quando o favelado acorda é que começa o pesadelo.
Ficar em casa é um apelo racional, que atende a recomendações dos infectologistas. Mas como viabilizar esse confinamento? No barraco não há computador, muito menos wi-fi. O favelado não faz home office. Precisa entregar comida de bicicleta, catar latinha na rua, faxinar a casa dos patrões.
Dizer “fique em casa” para quem mora em casas tão insalubres é aumentar o fogo sob a panela de pressão social – a qualquer hora ela pode explodir. Os bares e as igrejas são verdadeiros escapes emocionais, que ajudam a reduzir a pressão.
As condições são muito desiguais para cada um cumprir as regras de isolamento. A sociedade não pode simplesmente dizer “fique em casa” sem levar em conta o país em que vivemos. Aqui na favela, 37% das pessoas sonham em um dia ter uma casa, segundo o DataFavela. Sonham, acima de tudo, com um lar, uma moradia acolhedora que permita viver bem, não apenas sobreviver. Sem considerar essa radiografia social, dizer “fique em casa” é tiro n’água.
Nenhum lugar do mundo fez isolamento em meio a tanta carência. Lockdown é política pública, ou não é nada. Se o favelado não tiver condições de ficar em casa com um mínimo de dignidade, ele vai sair e buscar seu sustento. E não se engane: esse não é um problema apenas da periferia. Se o vírus não parar de circular, perdemos todos, moradores da favela ou do condomínio de luxo.
A sociedade precisa fazer uma escolha. Ou continuamos repetindo ao vento “fique em casa”, ou damos condições para que esse conselho seja seguido. O retorno do auxílio emergencial não vai bastar, porque R$ 150 não sustentam uma família. A periferia precisa como nunca de um olhar solidário, de doações, de engajamento.
A fome não mata apenas os mais pobres. Mata também a nossa civilidade. Felizmente, as doações, que estavam na UTI, começaram a reagir.
Que esse “fique em casa” deixe de ser um bordão inócuo para uma imensa parcela da população e se torne uma pergunta: do que você precisa para poder ficar em casa.
Edu Lyra, ativista cultural e escritor