O Brasil não é o único país a prever que ocupantes de altos cargos — como presidentes, governadores, ministros, deputados, senadores, prefeitos ou generais — sejam julgados apenas por Cortes superiores. A distinção, chamada foro especial, tem razão de ser. É do interesse público resguardar o exercício dessas funções. Sem o foro, ministros de Estado estariam suscetíveis a inúmeras ações iniciadas em diferentes pontos do Brasil. Deputados e senadores seriam alvos fáceis de opositores políticos em variadas instâncias da Justiça. Foi para evitar o uso político dos tribunais que se concedeu a tais cargos a prerrogativa de ser julgados apenas por juízes das altas Cortes.
Por muito tempo, o foro especial foi no Brasil sinônimo de privilégio, em razão do pouco apetite das Cortes superiores por punir os poderosos. Mas isso começou a mudar a partir do escândalo do mensalão. A profusão de processos gerada pelos casos de corrupção, em particular na Operação Lava-Jato, sobrecarregou o Supremo Tribunal Federal (STF), fato que contribuiu para que, em 2018, os ministros restringissem o foro especial a crimes relacionados ao cargo público e cometidos em seu exercício.
Mas essa decisão deixou uma brecha aberta. Bastava o político sair do cargo no meio de um julgamento para seus casos serem transferidos a instâncias inferiores (a não ser que estivessem na fase de alegações finais). Os interessados em adiar a sentença até a prescrição dos crimes passaram a ver num pedido de demissão ou numa renúncia a oportunidade de enviar as ações penais a juízes da primeira instância, protelando as decisões da Justiça.
Em 2014, o senador mineiro Clésio Andrade respondia a processo sob acusação de peculato e lavagem de dinheiro. Quando o ministro Luís Roberto Barroso marcou audiência para interrogá-lo, ele renunciou, e o caso foi enviado à Justiça Federal em Belo Horizonte. Um inquérito aberto em 2013 contra o senador Zequinha Marinho (Pode-PA) começou no STF, foi remetido a diferentes tribunais, e até hoje o réu não foi interrogado.
Esse tipo de manobra levou o Supremo a reexaminar o foro especial. No voto que deu em dois processos sob sua relatoria, o ministro Gilmar Mendes defende manter na Corte os processos nela iniciados, mesmo com a interrupção do exercício do cargo público (quatro ministros já apoiaram o voto de Gilmar no plenário virtual).
É verdade que cabe ao Congresso estabelecer a extensão da prerrogativa constitucional do foro especial. Uma Proposta de Emenda à Constituição que o limita a cinco cargos (presidente e vice-presidente da República, presidentes de Câmara, Senado e STF) foi aprovada em 2017 no Senado, e há pressão para que seja votada na Câmara. Mas trata-se apenas de uma tentativa de esvaziar a lei em benefício dos que querem escapar de uma decisão judicial rápida e desfavorável — e deveria ser deixada de lado. No que diz respeito à proteção constitucional aos altos cargos públicos, o Parlamento nada propôs de sensato até agora.
Por isso, ainda que não seja recomendável ao Supremo mudar de opinião com frequência sobre um tema a respeito do qual já tomou decisão, é importante que os ministros voltem a se pronunciar agora para tapar a brecha deixada, apoiando a proposta de Gilmar. Do contrário, permanecerá o caminho para a impunidade.
Fonte: https://oglobo.globo.com/