A recusa da Starlink em cumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal de bloquear o acesso de seus usuários ao X mostrou que o fio puxado pelo ministro Alexandre de Moraes era do bigode de um elefante. Ao contrário do X, que nem publicidade mais dispõe, a Starlink tem 224 mil contratos - desde navios da Marinha na Antártica a cidades-símbolo do agronegócio (Sinop-MT) ou turismo (Fernando de Noronha-PE).
A unanimidade de Moraes na Primeira Turma respalda a decisão do ministro mas não conduz ao bloqueio da empresa. Se concorrentes do X, como Bluesky ou Threads, já se arvoram a conquistar ex-tuiteiros, a substituição da empresa que lidera a banda larga por satélite no país, com 42% do mercado, não se faz em dois cliques.
A disputa é gigante mas paquidérmica. A recusa da Starlink foi comunicada por WhatsApp ao presidente da Anatel, Carlos Baigorri, que tem até a sexta-feira para receber a notificação formal da recusa ou verificar, in loco, o descumprimento. Só então fará a comunicação oficial ao STF que, por enquanto, bloqueou as contas, mas não a operação.
O bloqueio das contas da Starlink é o que possibilitará, segundo a decisão, o pagamento das multas do X. A estas, que já ultrapassariam os R$ 18 milhões, podem vir a se somar aquelas impostas à própria Starlink pelo descumprimento da decisão.
Os ministros que não deixaram dúvida do respaldo a Moraes também abriram porta para uma negociação futura - desde o voto de Cármen Lúcia (“O Brasil não é xepa de ideologias sem ideias de Justiça, onde possam prosperar interesses particulares embrulhados no papel crepom de telas brilhosas sem compromisso com o Direito”) àquele de Flávio Dino (“sem prejuízo de futuro e imediato reexame à vista da eventual correção da conduta ilegal da empresa em foco”).
Se o bloqueio do X não traz prejuízos financeiros a Elon Musk, por se tratar de uma empresa deficitária, aquele da Starlink afeta uma empresa que acabou de alcançar a liderança do setor, como mostrou Ivone Santana, no Valor. Se, por “correção de conduta”, entende-se o recuo de Musk, parece improvável que este venha a acontecer, como sugere o novo recurso apresentado pela Starlink ao STF nesta segunda. Sua substituição pela concorrente mais próxima, a também americana Hughesnet (38% do mercado nacional), parece mais provável.
A imprensa internacional acompanha a batalha com nítido viés pró-STF, a começar pelo “The New York Times”. “Tendo construído ou comprado empresas que têm crescente controle sobre como as pessoas se conectam e se comunicam, Musk tenta aumentar sua influência para confrontar autoridades e desafiar leis das quais ele não gosta”, diz a reportagem desta segunda do correspondente Jack Nicas. A torcida sugere impaciência com a dependência crescente dos EUA em relação a Musk, a começar por contratos do Pentágono com a Space X, empresa à qual a Starlink é subordinada, da ordem de US$ 1,2 bilhão.
No Brasil, o desagrado é acrescido por promessas não cumpridas - e lembradas na decisão de Moraes - como a oferta de internet gratuita a escolas públicas na Amazônia em meio ao cortejo de Musk ao governo Jair Bolsonaro. Mas não apenas. O imbróglio da Starlink remexe as disputas entre as teles e as redes sociais no Brasil.
Graças ao WhatsApp, o mercado de telefonia foi destroçado. Se este movimento beneficiou o consumidor, por outro lado, as teles se queixam que as redes ocupam a maior parte da infraestrutura de comunicação de dados do país e as obriga a aumentar o investimento em sua expansão sem que paguem mais por isso.
A atual gestão da Anatel é proativa - até demais - na defesa das teles em sua cruzada contra as redes. Já pretendeu criar uma descabida estrutura de “serviços e direitos digitais” para promover a “liberdade de expressão e o combate à desinformação, discursos de ódio e democráticos” e discute com parlamentares a apresentação de um projeto de lei para cobrar pela sobreutilização da infraestrutura pelas redes sociais.
A viabilidade de ambas as iniciativas hoje parece menor do que a determinação do governo em levar à frente a tributação das grandes empresas de tecnologia para compensar a desoneração da folha de pagamentos em 2015.
Nenhuma dessas medidas, porém, traz alternativas para diminuir a dependência das diatribes de Elon Musk. Inexiste um projeto estruturado para que o país disponha de sua própria estrutura de satélites.
Depois da guerra da Ucrânia, que foi riscada do mapa digital pela Rússia e só não ficou sem conexão por conta da Starlink, aumentou a disputa pela tal “soberania digital”. Se a órbita já está mapeada pelos satélites hoje planejados, que dirá quando o Brasil vier a ter condições de disputá-la.
O Ministério da Justiça, que atuava na mediação entre o STF e as redes sociais, ausentou-se do debate. Sem mediadores no Executivo, o flanco ficou exposto. Na sexta-feira, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em litígio com o STF por conta das restrições impostas às emendas parlamentares, criticou Moraes por ter extrapolado as decisões sobre o X para a Starlink.
O Ministério das Comunicações, cujo titular, Juscelino Filho, foi indiciado pela Polícia Federal por suspeita de organização criminosa, lavagem de dinheiro, corrupção passiva e fraude em suposto desvio de emendas parlamentares repassados à Codevasf, parece seguir alheio à disputa no seu quintal. Na quitanda das emendas parlamentares, não sobrou espaço para a geopolítica.
Maria Cristina Fernandes, jornalista
Fonte: https://valor.globo.com