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Enfim, réu

Enfim, réu

A patética tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro de eximir-se de culpa da tentativa de golpe de Estado de que foi acusado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) mostra que, finalmente, começa a cair a ficha de que ele está mesmo inelegível e não poderá concorrer à Presidência em 2026. Seu vitimismo chega a ser ridículo. As alegações que brandiu como se estivesse de volta ao cercadinho do Alvorada foram meias verdades contadas por um político acuado pelos fatos. Nada do que falou à guisa de defesa mudou a percepção generalizada de que o golpe de Estado o teve como líder incontestável.

Chegou a insinuar que explicaria por que pensou em editar um ato excepcional como resposta à derrota para Lula nas eleições de 2022, mas não consumou a promessa, talvez por não ter argumentos que justificassem a medida extrema. Não havia razão para estados de exceção pelo simples fato de que seu adversário de esquerda vencera a eleição, a não ser a obsessão de denunciar fraudes na votação eletrônica jamais comprovadas.

O fato de o presidente Donald Trump ter citado o Brasil como exemplo para os Estados Unidos no uso da biometria para verificar a identidade do eleitor foi uma ducha de água fria na tese bolsonarista de que o voto brasileiro não pode ser auditado. Se a biometria funciona, por que os demais passos não funcionariam? A biometria, aliás, seria o momento mais propício para uma fraude. Trump está preocupado em encontrar uma tecnologia que barre os eleitores ilegais, segundo seu ponto de vista.

Não houve novidades na primeira parte do julgamento de Bolsonaro e seus cúmplices no STF; apenas o ministro Luiz Fux revelou algumas discordâncias, que serão aprofundadas na parte final do julgamento. O ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, demonstra certa dificuldade de conviver com as divergências, respondendo às vezes muito irritadamente às ressalvas de Fux. Em sua fala, foi além do papel do relator; assumiu muito um lado da questão, o que pode incomodar os mais puritanos, no sentido de revelar sua tendência, que, aliás, não é novidade. A exibição do vídeo dos momentos mais trágicos da tentativa de golpe me pareceu boa ideia, para trazer de volta ao presente o passado infame. No entanto provocou reações nos defensores da ortodoxia jurídica, que viram na ação uma indevida tomada de posição. De qualquer maneira, acredito que a decisão será unânime. Analisando os autos do processo, ficou claro que não há como escapar da conclusão de que houve tentativa de golpe.

Os acusados tentam livrar a si mesmos, sem a preocupação de defender ou proteger Bolsonaro. Ele próprio também não procura isentar de responsabilidade seus antigos auxiliares, mas tenta desesperadamente eximir-se de culpa no golpe de Estado. O volume avassalador de provas exibido pelo relatório de Moraes deixou claro que não há possibilidade de que escapem de punição. Mesmo Bolsonaro já revelou que teme ser condenado a 30 anos de prisão.

Como tudo para ele gira em torno de sua própria pessoa, Bolsonaro diz que a cabeleireira do batom foi condenada a 14 anos de prisão apenas para permitir que o dobro da pena seja dado a ele. Os ministros terão de enfrentar essa questão no decorrer do julgamento, já que Fux avisou que fará a defesa de uma redução da pena da cabeleireira, retirando de sua condenação e dos demais acusados penas acumuladas por golpe de Estado e tentativa de derrubada do Estado Democrático de Direito. Também o uso de armas na invasão do Supremo não parece ser acusação adequada a ela e a outros, embora muitos dos presos tenham usado pedaços de madeira e de ferro como armas, como ressaltou o ministro Flávio Dino, lembrando a invasão do Capitólio em Washington. Bolsonaro é a figura central, e não culpá-lo pela tentativa de golpe seria cegueira deliberada, só aceitável para seus seguidores mais fanáticos.

Merval Pereira, jornalista e escritor

Fonte: https://oglobo.globo.com/