Ao que tudo indica, o semestre útil em Brasília termina hoje. É de extrema relevância e muito simbólica a discussão da reforma tributária, que estava em debate na Câmara no fechamento desta coluna, mas a análise de que o espaço ao centro se alargou desde o fatídico 8 de janeiro independe dela. Trata-se de ótima notícia para a democracia e para o debate público.
A própria negociação dos últimos dias foi emblemática. A semana que começou como um levante dos governadores contra a reforma tributária — em que a direita vislumbrou mais uma oportunidade de polarizar com o governo — terminou mais próxima do consenso num tema-chave para o desenvolvimento do país que o visto nas últimas três décadas.
Confirmada a aprovação da reforma na Câmara e, depois, no Senado, o governo Lula sairá como vitorioso, inegavelmente, mas não só ele ou Arthur Lira. A possibilidade de diálogo amplo, plural e com forças muitas vezes rivais em torno da agenda econômica é algo que não se via ao menos desde a reforma da Previdência e que foi completamente inviabilizado pela radicalização promovida por Bolsonaro em quatro anos.
Não é à toa que este momento de alargamento do debate coincida com o início da prestação de contas do ex-presidente com seu espólio de ataque às instituições e da elevação do negacionismo a política pública.
Algumas pessoas perceberam antes que outras a importância de trabalhar para aplacar a polarização Lula-Bolsonaro, que, com diferentes configurações, definiu as eleições de 2018 e 2022. Enquanto setores do próprio PT parecem presos à ideia de que ter Bolsonaro como espantalho é a melhor maneira de se manter no poder, outros integrantes do partido ou do governo, como Fernando Haddad, Geraldo Alckmin, Alexandre Padilha ou Flávio Dino, entenderam ter sido muito grave o ponto a que o Brasil chegou, que transbordou em 8 de janeiro. Ou se agia para levar a razoabilidade de volta ao comando das decisões políticas, ou não haveria vencedores de nenhum dos lados.
Para isso, contribuíram decisivamente neste semestre o Judiciário e o Legislativo, e, mesmo com a disputa por protagonismo que travou o início dos trabalhos no Congresso, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco tiveram papel fundamental para ajudar a isolar a extrema direita.
Como análise política não pode ser binária, apaixonada ou moralista, reconhecer que, sem Lira, o governo não teria saído do lugar não significa em momento algum deixar de entender o personagem e saber que ele tem um contencioso investigativo nada simples pela frente — embora esse acerto de contas tenha sido adiado pela liminar do ministro Gilmar Mendes.
Que o governo tenha sabido separar as coisas e adotado a cautela na relação com Lira, é sinal de maturidade e pragmatismo. Mostra que, nesse quesito, Lula 3 resolveu não repetir Dilma 2, que imaginou poder derrotar Eduardo Cunha e caiu em seguida.
Num mundo ideal, presidentes de Casas legislativas não teriam de responder por relações com acusados de desviar recursos de contratos públicos. Mas o mundo ideal não vota. Os eleitores são o reflexo de um país desigual, em que vícios políticos vêm sendo repetidos e aperfeiçoados ao longo de décadas, mas que, mesmo assim, aos trancos e barrancos, resistiu a uma intentona golpista que pretendia solapar as eleições, a liberdade de imprensa e quantos outros obstáculos houvesse ao seu projeto de poder.
Ao longo dos últimos seis meses, o necessário acerto de contas da Justiça com os que perpetraram essa tentativa canhestra de golpe andou em paralelo com a aprovação de matérias importantes num Congresso que tem maioria ideologicamente diferente do governo Lula, mas que conseguiu isolar os extremistas e alargar o centro — Centrão à frente, com Lira no comando. Não, o Brasil não é para amadores nem para teóricos.
Vera Magalhães, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/