Quando, daqui a algum tempo, formos discutir a eleição de 2020, é provável que dela só reste uma coisa a dizer: que houve a eleição.
É pouco. Eleições são processos complexos e cheios de consequências, seja pelo que representam na vida política, seja pelo que suscitam no imaginário. São também caras, exigindo recursos públicos e privados nada pequenos. Fazê-las apenas por fazê-las tem cara de desperdício.
Em um país como o Brasil, todavia, é bom que apenas haja uma eleição, mesmo que seu significado seja pequeno. Se fôssemos os Estados Unidos, onde elas se sucedem de forma ininterrupta desde o século XVIII, nem tanto. Mas nossa história é diferente: em cem anos, entre 1900 e o ano 2000, tivemos eleições razoavelmente amplas e livres em, somados, menos que trinta anos. Nos setenta outros, até as fizemos, embora com participação minúscula, e vivemos décadas sob ditaduras.
Daqui a vinte dias, o eleitorado brasileiro irá às urnas eleger prefeitos e vereadores, mantendo a rotina de eleições periódicas, como estabelece a Constituição, o que é muito bom. Mas, em face da situação que o País vive, é insuficiente.
O Brasil não é o único lugar do mundo com eleições em plena pandemia e que atravessa graves problemas econômicos, sociais e políticos, ainda que seja um dos que mais mal se saem na resposta a esses desafios. Não foi a natureza ou alguma inevitabilidade que nos trouxe a esse posto, mas um conjunto de escolhas, definidas e colocadas em prática por nossas elites dirigentes, através do capitão Bolsonaro, seu rosto e representante.
No plano sanitário, vamos fazer uma eleição falsamente “normal”, salvo por recomendações inócuas de uso de máscaras e distanciamento social nos locais de votação, que serão tão eficazes quanto os tapa-queixo que vemos nas ruas e as marcações no piso de ônibus urbanos. Ganha quem apostar que os eleitores terão que lidar com filas e aglomerações perigosas.
Por que não avançamos na discussão de formas remotas de voto? Por que impor a todos um só modo de votar? Nas raras pesquisas de opinião que tratam do tema, vemos que, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte não passa de 25% a parcela que se sente “muito segura” em ir votar. Os mais receosos são os mais pobres e, muito provavelmente, os menos bolsonaristas, que não estão obrigados a se pavonear como machos.
O pior dessa “normalização” da eleição acontece, porém, em seu conteúdo. Estamos sofrendo uma calamidade sanitária sem horizonte de solução, com quase 160 mil óbitos e mais de 5 milhões de doentes, enquanto aguardamos as próximas ondas da doença. Ao mesmo tempo, enfrentamos uma catástrofe econômica, com níveis recordes de desemprego, falência de politicas de mitigação da pobreza extrema e sucateamento da capacidade reguladora do estado, que se traduz em incêndios florestais, disseminação de agrotóxicos, irresponsabilidade ambiental e ataque aos povos indígenas. Não temos politica educacional, de saúde, habitação popular, apoio à cultura e ao desenvolvimento cientifico e tecnológico. Nossa politica externa é uma piada internacional. A única vitrine do governo, o Auxilio Emergencial, sobrevive por parecer ser clientelisticamente útil ao capitão, com a cumplicidade e o aplauso dos “liberais”. Nenhum desses males é culpa do vírus.
Nossas elites dirigentes querem que a eleição de 2020 seja uma “eleição municipal normal”, bem comportada, para discutir semáforos, coleta de lixo e conservação de parques. A “eleição normal” é parte da construção de uma “normalidade ampla” com Bolsonaro (mantido na coleira), o aprofundamento da ortodoxia mercadista e a “pax brasiliense” entre os Poderes e entre as corporações, criando uma ponte para chegar “tranquilamente” a 2022 (arrebentando com a esquerda pelo caminho, se possível).
Não é estranho que amplas parcelas da população se encaixem mal nesse jogo. Através das pesquisas, vemos que, em muitas cidades, o desinteresse e o baixo envolvimento são regra. No Rio de Janeiro, a três semanas da eleição de 2016, 23% não tinham candidato na pergunta espontânea; este ano, são 45% (dados do Datafolha). No Recife, em 2016, eram 24% (Datafolha); hoje, são 49% (Ibope). Em Porto Alegre, em 2016, eram 40% (Ibope); hoje, 64% (Methodus).
Vamos votar, sem a segurança adequada, sem discutir as questões relevantes, sem o interesse e a motivação dos eleitores. Era isso mesmo que devíamos fazer, mas poderíamos estar aproveitando a oportunidade de maneira muito melhor.
Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
Fonte: https://www.brasil247.com