Não é de hoje que a direita brasileira faz vista grossa às evidências de que Jair Bolsonaro em mais de um momento agiu para não passar o poder a Luiz Inácio Lula da Silva, se necessário abolindo a democracia. Mais que isso: parcela significativa do eleitorado brasileiro segue fidelizada ao ex-presidente mesmo diante da sua condenação à inelegibilidade e de tudo que foi revelado depois disso.
Mas o indiciamento de Bolsonaro, de vários ex-ministros e de 24 militares, entre eles generais e um almirante, dá uma dimensão muito maior à natureza autoritária do governo brasileiro de 2019 a 2022.
Faltou muito pouco, e a resistência um tanto acanhada de uns poucos personagens-chaves salvou o Brasil de ver um golpe sair das pranchetas e dos grupos de mensagens e ganhar as ruas.
Diante dessa constatação, que a inteireza do relatório da Polícia Federal, quando seu sigilo for levantado, tornará irrefutável, se coloca um novo dilema diante de políticos e eleitores que, até aqui, têm minimizado tudo o que já se sabe e sempre se soube sobre seu capitão: afinal, quem são os democratas no campo da direita brasileira?
Não é possível mais afirmar compromisso com a independência e a separação dos Poderes, a realização de eleições livres e universais e a alternância de poder, princípios esses assegurados pela Constituição de 1988, e minimizar a trama descortinada pela Polícia Federal nos meses que antecederam a eleição até a posse de Lula.
Mesmo aqueles que devem seu sucesso eleitoral ao fato de terem sido ungidos por Bolsonaro precisarão se decidir se seguem sob suas bençãos, com a fidelidade canina que, sabemos, ele costuma cobrar daqueles a quem toca, ou se rompem com essa história que ficará para sempre manchada pela nódoa da conspiração sediciosa.
Os primeiros dias desde que foi deflagrada a etapa final do inquérito concluído nesta quinta-feira mostraram as figurinhas carimbadas do bolsonarismo, políticos que ascenderam a cargos no primeiro escalão graças ao ex-presidente, ainda tentando defender o indefensável, evocando até mesmo a facada de que Bolsonaro foi vítima em 2018 para revitimizá-lo, como se o atentado abominável que sofreu o eximisse de, anos depois, tentar convencer os comandantes militares a darem um golpe de Estado em seu nome.
Mas nem todos deverão seguir para o despenhadeiro junto com o capitão reformado. O movimento que começou na própria quinta-feira, para enterrar sem pompa o vergonhoso projeto da anistia para os condenados de 8 de Janeiro, no qual Bolsonaro nem escondia que pretendia pegar carona, mostra que um bom pedaço do Centrão não está mais disposto a seguir atrelado ao destino do ex-presidente, seus generais aloprados e companhia bela.
A revelação de que o golpismo não era só uma ideia na cabeça de poucos tresloucados, mas um plano engendrado a muitas mãos, com cronograma, previsão de orçamento, deslocamento de pessoal e uso inclusive de veículos do Exército, com data para acontecer e alvos que estavam sendo monitorados, torna a escolha de seguir professando a cartilha bolsonarista uma opção clara pela relativização da democracia enquanto valor em si mesma, por parte de mandatários, dirigentes políticos e eleitores. Traça uma risca no chão da qual não é possível se desviar mais.
É verdade que as últimas eleições mostraram que o eleitorado brasileiro está mais conservador que há dois anos e que a centro-direita ganhou força nos municípios, que pode se replicar nas eleições gerais daqui a dois anos. Mas também é verdade que ainda está fresca na memória brasileira a lição de que condescender com quarteladas, sob que pretexto for, costuma resultar em longos períodos de supressão de liberdade, esse direito pelo qual os mesmos bolsonaristas enchem a boca para clamar.
Ela só será real e para todos se a vontade do eleitor for soberana e todos aqueles que agiram para tentar solapá-la sejam julgados e, se condenados, presos.
Vera Magalhães, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/