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E daí? E daí que chega!

O Brasil está adoecido. Sofre de ansiedade, de medo e de indignação – com exceção, talvez, da parcela de 30% que ainda não sabe o que é isto. A solução está descrita em uma bula que desde 2016 vem sendo conspurcada e atende pelo nome de Constituição. É ela que nos deveria socorrer nos momentos de aflição como o que atravessamos agora, mas ultimamente ela vem sendo utilizada apenas em situações de conveniência. E por conveniência aí, se entenda, principalmente, os cenários políticos. Acontece que agora o clamor pela vida se sobrepõe a todos os outros e para que ela, a vida, prevaleça, é preciso que se chame o presidente da República às falas da Lei. É ele um entrave à sobrevivência da população. Aqui e em todo o canto do planeta o seu nome ecoa como pulsão de morte. E 5.017 cadáveres – não vou dourar a pílula para ficar mais suave. É disto que se trata – representam dor demais para que se passe o pano. 

Pela alma de Ulysses Guimarães! Suas palavras, proferidas no dia 5 de outubro de 1988, na promulgação da Constituição, reverberam ao longo da nossa história recente e, mais do que nunca, neste momento de dor aguda deve nos guiar! (Sim, é tempo de muitas exclamações. São elas que nos traduzem o estupor. São elas que descortinam o nosso grau de perplexidade. Deixemos o ponto de interrogação para os que não têm rumo, para os que não têm projeto de país, para os que não têm amor a esta Nação!) 

A eles cabe perguntar. A nós cabe dar a resposta. E a resposta está na nossa Carta, construída por uma geração que também viu tombar os seus entes queridos. Não por pandemia ou corona vírus, que abate a todos indistintamente. Derruba os que sabem e os que ignoram o real significado de uma pandemia e de um funeral em vala comum. A Constituição de 1988 foi fecundada por corpos deixados ao relento, por corpos carbonizados, por corpos “desaparecidos” dos que optaram pela luta contra o arbítrio e pelo lamento dos que ficaram para pranteá-los. A Constituição de 1988 foi fermentada com a dor de uma geração sufocada pelas armas dos pares daquele que hoje nos oprime. Façamos valer os seus ditames.  Não nos afastemos das palavras de Ulysses Guimarães. Deixemos que elas nos chamem à razão:

“Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho”.E por que desertar agora? Poderíamos nos perguntar. “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”.

Sábias e atuais palavras. Saudades de um presidente da Câmara com pulso, coragem. Saudades de um presidente da Câmara sabedor de sua missão e do tamanho do livro que tinha entre as mãos e do cargo que ocupava. Consciente do peso de cada palavra proferida naquele momento crucial de transição para o maior bem almejado pelo homem: a liberdade. 

Como nos apequenamos tanto, a ponto de ficarmos travados entre a vida e superstição de um homem que teme perder o cargo para o azar, quando o azar maior é tê-lo na condução desse processo? (Agora, sim, a interrogação nos pertence). O momento não é propício à preservação da sua biografia, meu caro parlamentar. Não se esconda atrás da desculpa de que prefere jogar as atenções desta casa que ora preside, no combate à pandemia, quando sabemos que só teremos atenção à onda de contágio quando o senhor tiver coragem de deixar de lado as suas veleidades pessoais, a sua “superstição”, para entender que entre a vida e a morte está a sua responsabilidade de fazer cumprir a Constituição que está sobre a sua mesa. 

A vida, se o senhor ainda não entendeu, está na ressurreição de um país decente, conduzido por brasileiros e regidos pelas leis que brotaram do clamor popular, de uma Constituinte que traduziu as nossas vontades. Isto, sim, é cuidar da pandemia. Foi uma geração inteira que a elaborou, nobre deputado. Está lá, em cada linha, a história do seu pai (que ele depois renegou), e de sua geração. Está neste livro parte do porquê do seu nascimento longe de terras brasileiras. E o que esperamos para nos mobilizarmos e tomar novamente o nosso destino em nossas mãos, ainda que por trás de máscaras incômodas, ainda que detidos por portas e janelas que nos aprisionam? Nossa alma está livre, meu nobre deputado. E clama pela execução do que está descrito nas nossas leis. 

Não impeça que o nosso destino se cumpra por mero capricho de projetos pessoais. O que o imobiliza diante de 27 pedidos de impeachment ou de uma solução qualquer que nos separa da decência, não é a sorte ou o azar. O que o separa da ação é o medo. O medo, sim, o imobiliza. O senhor teme, derrubada a chapa que (des)governa este país, ter de assumir o cargo no olho do furacão, para cumprir um mandato tampão em plena crise política, econômica, sanitária, quando a sua ambição o projeta, para um futuro, ainda que não seja o de 2022, para um mandato de quatro anos. 

É justo que o senhor sonhe com o cargo da presidente, mas é muito mais que justo que sonhemos, agora, com uma libertação higiênica, de alguém que chegou à presidência por caminhos tortuosos e nos conduz para uma interrogação: “E daí?” E daí que CHEGA! 

E voltando a Ulysses Guimarães, de quem o senhor deveria seguir o exemplo: “Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”.


Denise Assis, Jornalista

Fonte: https://www.brasil247.com