Em abril, fez 523 anos que os marujos de Pedro Álvares Cabral deram os primeiros passos oficiais de europeus nas terras que viriam a se chamar Brasil. Desde aquelas primeiras marcas nas praias até hoje, ocupamos 8,5 milhões de km², habitados por 220 milhões de pessoas; nos transformamos no 5º maior e no 6º mais populoso país do planeta, com uma economia entre as dez maiores. Não fizemos feio, mas e agora, Cabral?
Por 350 anos, mantivemos um sistema escravocrata que serviu de base à economia e à sociedade, e nos deixou fósseis sociais na pobreza, no racismo, na baixa produtividade, na aceitação da desigualdade, no desprezo à educação do povo. Mantemos até hoje a semiescravidão com 10 milhões de adultos analfabetos, uma indecente concentração de renda, um quadro social em que metade da população sobrevive na pobreza e na penúria da fome, com insalubridade e violência; e em um sistema educacional com escolas senzalas para os pobres e escolas casa grande para os filhos dos ricos.
Nossa democracia é ameaçada por militares que só confiam neles, políticos que só buscam benefícios pessoais, universitários que desprezam os analfabetos e não veem o desastre da educação de base, empresários que enriquecem graças a subsídios estratosféricos recebidos do Estado e a minúsculos salários pagos a seus trabalhadores. Sem inovação nem competitividade. O resultado é que a imensa população, ocupando imenso território, ainda não se transformou em uma imensa nação.
A população brasileira é uma colcha de corporações sem formar um povo com instinto nacional comum. Famílias, indivíduos, corporações, empresas, universidades não se veem como parte do todo nacional e, por isso, mais disputam entre si para apropriar-se do maior pedaço de riqueza disponível no imediato do que se unem para fazer os sacrifícios necessários à construção da grande nação.
Quinhentos anos depois, continuamos divididos entre europeus e índios, ricos e pobres, negros e brancos, doutores e analfabetos, sem uma liga apesar do idioma comum. E agora, Cabral?
Apesar de termos sido o país que mais cresceu durante certo período da história moderna, nossa indústria esbarra na ineficiência, na baixa poupança, no endividamento generalizado, na falta de inovação, no baixo potencial científico e tecnológico, na pobreza generalizada, sobretudo nas consequências, até hoje, da escravidão, mantida por sua última trincheira: a educação sem qualidade e desigual. Essa talvez seja nossa maior falha, porque é a causa de todas as falhas, embora não a única.
Anualmente, matriculamos 50 milhões de crianças na escola, mas, no máximo, 12,5%, 6 milhões, terminarão a educação de base preparadas para enfrentar o mundo adiante e aprender a construir um Brasil melhor e mais belo. Depois de séculos recebendo imigrantes de todas as partes, nossos jovens agora sonham em emigrar. Todos os anos, perdemos braços e cérebros que abandonam o Brasil porque não têm esperança de vida melhor para eles nem veem perspectiva para o país.
Desde aquele abril até hoje, o Brasil relegou a educação como o vetor do progresso. A abundância de recursos naturais, que o escriba da descoberta comunicou à corte e a disponibilidade de mão de obra escrava trazida logo depois da África deixaram a ilusão de que não havia necessidade de criar conhecimento na população e técnicas entre especialistas. Passados cinco séculos, percebe-se o erro e tem-se a consciência de que não daremos continuidade ao progresso, não formaremos uma grande nação se não formos capazes de aproveitar o maior e mais permanente de nossos recursos: os cérebros de nossa gente. Para isso, será preciso eliminar a desigualdade entre escolas senzala e escolas casa grande e incorporar todas as nossas crianças em um sistema único nacional público de educação de base com máxima qualidade, capaz de formar nossa gente para as necessidades do mundo contemporâneo: a promoção de um desenvolvimento eficiente, justo, democrático e sustentável.
Estamos devendo isso a Cabral e seus marujos que chegaram há 523 anos, a todos nossos antepassados e a nossos descendentes que ainda não nasceram: transformar território e população em uma grande nação.
Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)