À beira do Lago Paranoá, a 4,4 quilômetros do Palácio do Planalto, tratores rasgam a terra vermelha para construir um grande reservatório, com capacidade de 96 mil metros cúbicos, para as águas pluviais de Brasília. Como todo o planeta, a capital federal enfrenta os efeitos da mudança do clima. As chuvas de verão têm colocado as avenidas cuidadosamente planejadas da cidade debaixo d’água com uma frequência que não se via há apenas uma década.
Historicamente, obras de drenagem têm recebido pouca atenção porque são caras e seus benefícios não são percebidos com facilidade pela população. Por isso, os políticos que eventualmente as patrocinam têm dificuldade em colher dividendos, comentou o economista Gesner Oliveira, ex-presidente da Sabesp e sócio da GO Associados. “Tivemos de viver uma tragédia como a do Rio Grande do Sul para o problema se tornar mais concreto.”
Depois do que se viu, a importância da drenagem urbana foi jogada sobre a mesa de gestores públicos e do setor privado.
Drenagem e contenção de encostas certamente ganharam um novo patamar de atenção, comentou à coluna o ministro das Cidades, Jader Filho. Ele informou que foi oferecido este ano R$ 1,7 bilhão para contenção de encostas e R$ 4,8 bilhões para drenagem. “Precisa ver se será o suficiente”, ponderou.
São montantes fora do padrão usual. No ano passado, por exemplo, os recursos federais efetivamente gastos em obras de drenagem urbana somaram R$ 146 milhões, segundo o Ministério do Planejamento. É menos de metade dos R$ 303 milhões que estavam disponíveis no Orçamento.
Essa “sobra” de recursos ocorre quando o ministério não consegue executar tudo o que planejou para o ano. É o que os técnicos chamam de “empoçamento”.
Também no setor privado, a participação é baixa. Levantamento da consultoria Radar PPP mostra que existem hoje no Brasil dez projetos de drenagem urbana no modelo de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Desses, apenas dois estão em operação. Em contraste, as parcerias na área de gestão de resíduos sólidos somam 662, e as na área de água e esgoto, 646.
O sócio da Radar PPP Frederico Ribeiro tem uma visão parecida com a de Gesner: as obras de drenagem ficaram em segundo plano porque é difícil aos prefeitos e governadores criarem uma “narrativa” para a obra, de forma a obter benefícios políticos. Outra possível explicação, disse, é que os danos provocados por alagamentos nunca haviam atingido a gravidade que se viu no Rio Grande do Sul.
A partir de agora, a perspectiva é de maior interesse em projetos nessa área, comentou. Ele acredita que a tendência seja de os fundos que o governo mantém na Caixa e no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para estruturar projetos de PPPs e concessões dedicarem mais atenção à drenagem urbana.
Para Gesner, seria necessária uma campanha de conscientização. Hoje, comentou, já não é fácil explicar às pessoas que a conta sobe para financiar a expansão das redes de água e esgoto. Se a fatura for causada por água de chuva, a dificuldade de compreensão é ainda maior.
Professor na Fundação Getulio Vargas (FGV), ele investiga o impacto financeiro das enchentes. A pesquisa mostra que projetos em drenagem limitam sinistros de seguros.
Um município poderia contratar apólices contra danos provocados por excesso de chuvas, comentou. Alterações em leis e regulamentos poderiam abrir caminho para as cidades securitizarem os recebíveis dos seguros e os venderem a fundos verdes ou filantrópicos, que aceitam taxas de retorno menores, ou para resseguradoras.
Essa seria uma forma de trazer recursos e bancar projetos na área, explicou. “Isso gera resultado, porque limita o risco”, comentou. “É um ciclo virtuoso.”
Recursos de fundos e resseguradoras poderiam também ajudar a colocar de pé mais projetos de PPPs, disse. A drenagem exige investimentos elevados e, diferentemente de água e esgoto, não tem uma conta paga pelos consumidores. Assim, precisariam de um aporte grande de recursos.
Projetos de drenagem também devem dar atenção à sustentabilidade, pontuou Gesner. No modelo tradicional, as obras têm por objetivo diminuir a velocidade de escoamento das águas das chuvas rumo a um ponto fora da cidade. Projetos assim podem ser combinados com outros, como as “cidades porosas”, nas quais a água é absorvida pelo piso e armazenada para reuso, comentou. Isso pode ajudar a diminuir sinistros em períodos de seca.
As mudanças climáticas estão movimentando o mundo das finanças. Organismos multilaterais de crédito, por exemplo, dedicam mais atenção a projetos que aumentam a resiliência das cidades aos eventos extremos e à criação de linhas emergenciais para atender a catástrofes como a do Rio Grande do Sul.
É preciso também uma mudança nos governos. Se obras debaixo da terra não dão voto, é hora de a negligência começar a tirá-los.
Lu Aiko Otta, jornalista
Fonte: https://valor.globo.com/