Um recorte da operação no Rio escancara o retrato de família à brasileira. Um terço dos mortos não tinha o nome do pai no registro. Não é detalhe burocrático, é herança social, mas reforça a tese conveniente e falaciosa de que “faltou homem em casa”. Mulheres criam filhos sem a figura masculina todos os dias e não os perdem para a marginalidade. Este é, infelizmente, o resultado da falta de Estado, políticas públicas e responsabilidade paterna.
Planejamento familiar é direito desde 1996. Na realidade, repete-se a velha sequência: pobreza, gravidez não planejada, maternidade forçada, nenhuma rede de apoio, infâncias sem horizonte. A adolescência segue sendo terreno da omissão. No Brasil, adolescentes engravidam quatro vezes mais que em países desenvolvidos. É uma fase da vida que não combina com fila de emprego nem com creche que fecha ao meio-dia. Há outro golpe no mito do “lar, doce lar”.
O estupro de vulnerável domina as estatísticas, e a maioria das vítimas é menor de 14 anos. Mesmo assim, há quem queira criminalizar meninas violentadas, equiparando o aborto após 22 semanas a homicídio. É a política do castigo, que pune a vítima para tentar “resolver” um problema social que começa muito antes da violência sexual.
E os pais? Em 2023, 172 mil crianças foram registradas sem o nome do pai, mas o raciocínio cruel culpa quem ficou, pelo sumiço de quem foi embora. Ausência paterna não é exceção, é estatística. O que falta não é “chefe” em casa, mas homens que exerçam a paternidade sem romantismo: apareçam no registro, paguem boleto e participem do cuidado, com presença, tempo e corresponsabilidade.
Esse recorte trágico revela o óbvio que o poder prefere calar. Quando o Estado falha no começo —planejamento, escola, saúde, proteção—, “compensa” no fim com fuzil. Não existe vácuo. Onde faltam creches, renda e política pública, sobram milícia, tráfico e morte precoce. A conta não é da mãe sem marido. É de um país que terceiriza a paternidade, demoniza direitos reprodutivos e só aparece na porta de casa para recolher o corpo.
Mariliz Pereira Jorge, jornalista
