Um amigo sábio lê meus textos e os discute sempre com críticas cirúrgicas. É dizer, desconstrói meus argumentos com argumentos na medida em que os leva a sério para o exercício intelectual produtivo. A maioria dos outros destinatários de meus artigos costuma não perder tempo com eles, ou simplesmente, não se pronunciam sobre, uma forma de expressão conhecida. Alguns emitem telegráficas palavras carregadas de bordões retóricos, ou registros condenatórios típicos dos cacoetes herdados da simplificação da polarização da política quando reduzida a um jogo de entre xerifes e bandidos.
Meu amigo sábio vê nos meus textículos uma mistura de educação militar e formação religiosa. De fato, o rigor da caserna me foi imposto por meu pai, contrastando com a acolhedora ternura materna. A experiência com o divino cristão deu-se por uma confusa confluência de protestantismo e catolicismo. Batizado na igreja presbiteriana seguida por meu pai, nos cultos dominicais apreciava a retórica do pastor. Nas missas com minha mãe fascinavam- me as igrejas e suas imagens, padres e santos, quadros, estátuas, rosáceas e cruzes. Com o pastor a retórica hiperbólica. Com os padres, uma fala mansa, quase feminina. No pastor o chicote do moralista espartano. No padre a lamúria exaltando o perdão dignificante.
Ao sincretismo acima referido agrega-se uma segunda religiosidade na minha (de) formação, o marxismo via Gramsci, assunto para outra reflexão. Daí a crítica do sábio aos meus escritos críticos à corrupção nas hostes petistas diante da sucessão de escândalos desde 2005 (Mensalão) e das minhas reservas quanto à certo otimismo lulopetista presentes na vitória na eleição presidencial.
Segundo meu amigo, discutir a política de maneira realista em termos intelectuais exige de acadêmicos e políticos, um necessário afastamento do significante corrupção, posto que, segundo ele, o termo dissolve-se no terreno dos juízos morais, não se prestando para compreender e mudar as coisas. Será?
De fato, meu crítico tem boa parte de razão ao insistir que a corrupção reduzida a juízo moral, revela um propósito político, seja ele vindo da direita ou da esquerda, prestando-se a tornar o significante mais empobrecido, pois desprovido de sentido claro. “Se gritar pega ladrão, não sobra um meu irmão” (na voz de Bezerra da Silva) é forma redutora – em termos analíticos, na medida em que a boa política parece não poder existir. De outra parte, a boa política não dissocia utopia e pragmatismo, procurando uni-las no terreno do possível. Fora disso temos o delírio do sonho utópico, contemplativo, ou a ação prática fechada, pois cega à mediação conceitual. Ambos colaboram para a reprodução do status quo.
Meu amigo afirma que a corrupção deve ser considerada como parte da estrutura social. Isso em qualquer sistema político, no Norte ou no Sul, mudando para mais ou menos, residual ou endemicamente. No Brasil a análise do poder e nele da corrupção, revela nesta a própria genética ou produção social no qual se dão as disputas sociais. Diplomatas, políticos, juristas, religiosos e outros grupos de interesse brasileiros, desde a Colônia, vêm se locupletando nas trocas de interesses estamentais mediadas pelo sistema de poder vigente. A emergência da República e a dominância das relações capitalistas somente ampliaram o novo corpo do Rei com o golpe de Estado de 15 de novembro de 1989 em sua capacidade de servir a grupos seletos da sociedade civil e do próprio Estado.
Concordando com o meu amigo crítico, tenho somente uma reserva sobre o abandono ou suspensão absoluta – se possível fosse, do que se tornou, inapropriadamente sob condições ideológicas, uma espécie de categoria: a corrupção.
Bolsonaristas apostam todas as suas fichas numa re-moralização da politica diante de um fato real: a resvalada do PT e aliados no crime explicita com maior ênfase em 2005, empreendendo a partir daí e via desinformação reiterada, a responsabilização dos graves problemas sociais a comunistas a serviço do que tomam como “ordem globalista”. À corrupção na sua imediata venalidade agrega-se a corrupção do caráter explícito da depravação do que tomam como costumes e tradição.
Lulopetistas, os bastiões da moralidade pública nos anos oitenta, por sua vez, acusam os bolsonaristas de falso moralismo, diante do verdadeiro estado de gangsterismo que a família do presidente criou no RJ, tornando próximas as relações criminosas entre milicianos, traficantes de drogas e policiais militares. Na presidência Bolsonaro, segundo seus críticos, procurou “universalizar” sua visão truculenta de lidar com os adversários ou melhor, inimigos, aliando-se a projetos violentos (armando setores da população; apoiando a destruição do habitat e povos indígenas; alimentando o ódio aos movimentos sociais, dos identitários aos de cariz socialistas, de ONGs de Direitos Humanos aos tendentes ao Estado republicano laico).
O problema é que a política realista não opera por promessas de autoconsciência ou por efeito de uma visão de mundo não religiosa, dada num formato marxista ou simplesmente calçado nos melhores propósitos científicos. Nem Marx nem Comte escapam das arapucas da Razão e da Ciência. Sabemos que com elas confirmou-se historicamente uma verdadeira teologia das Luzes nos séculos XIX e XX.
Então, como transcender a juízos de valor, juízos morais, remetendo-os das consciências subjetivas dos indivíduos para as “estruturas objetivas de poder” (Estado, Economia, Política internacional, etc). Ou essa exigência seria válida somente para a intelligentsia acadêmica, uma inteligência seletiva, aquela capaz de transcender aos habitus do homo academicus — também contaminado por preconceitos e interesses, encarnando posturas analíticas imunizadas quanto às ingerências dos juízos de valor, centradas, portanto, nos juízos de fato assentados na imparcialidade. Inquestionável?
A questão dos juízos morais presentes nos usos do significante corrupção talvez exijam um apelo mais realista: o de considerar, sim, a corrupção como parte do campo da política, de sua estrutura, portanto, não um espaço vazio ou a ser esvaziado, mas com um conjunto de ingredientes no qual ela é a pimenta, com potência, a ser considerada, sim, tanto por intelectuais quanto por políticos, pela simples razão de ser conectada com as consciências de milhões de indivíduos. Como assim?
A conexão entre ideias e vida prática separa e une intelectuais e política. O termo corrupção está nas estruturas, pessoas, instituições, coisas, não podendo facilmente ser dissociadas, por método científico. Mais profícuo tentar contrapor emergências de corrupção propondo formas não de eliminá-la, mas de sujeitá-las ao crivo da lei e do fortalecimento, no imaginário público, de que a coisa pública republicana pode ser mais transparente, a começar por assumir que a corrupção é de todos. Não pertence à esquerda ou à direita, a fascistas ou comunistas, a liberais ou conservadores, a políticos e acadêmicos. Da mesma forma os preconceitos e juízos morais. Eles integram a cosmovisão de seres humanos, sejam eles filhos de militar, evangélicos ou católicos, espíritas ou ateus, graças a Deus.
Edmundo Lima de Arruda Jr., Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1978), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1981) e doutorado em Sociologia - Université Catholique de Louvain (1991), pós doutorado em sociologia do político na Universitè Paris 8 Saint Denis (1996), pós doutorado em sociologia na universitè Paris X Nanterre (2009).
Fonte: https://osdivergentes.com.br