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Walter Delgatti, o hacker de Araraquara, comparado pela esquerda a Snowden, acabou nos braços de Bolsonaro

Este caso do hacker de Araraquara, que ajudou a tirar Lula da cadeia e pode levar Bolsonaro a ela, é típico de uma chanchada bem brasileira. Walter Delgatti jura que entrou no aplicativo Telegram dos procuradores da Lava-Jato e do então juiz Sergio Moro, por acaso, quando estava hackeando um juiz que o condenara. Fez o trabalho sujo de revelar os diálogos do que ficou conhecido por Vaza-Jato de graça, sem interesses políticos ou monetários.

Como teria ficado magoado com o tratamento do PT, que não lhe deu o devido valor pela desmoralização da Lava-Jato e consequente soltura do hoje presidente Lula, foi procurar abrigo no governo Bolsonaro e acabou invadindo a rede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a pedido da deputada federal Carla Zambelli.

O advogado Ariovaldo Moreira, em entrevista memorável no Estúdio I, da GloboNews, em que seu silêncio confirmou muitas informações, insinua que Delgatti prepara-se para uma delação premiada. Teria ouvido de Bolsonaro pessoalmente, e depois por celular frio, uma encomenda para invadir as comunicações do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e para provar que as urnas eletrônicas eram vulneráveis. As urnas passaram no teste, e o hacker não conseguiu invadi-las. Mas o sistema do CNJ e os dados do ministro do Supremo teriam sido violados, a ponto de Delgatti ter expedido uma ordem de prisão de Moraes contra si mesmo, numa molecagem eletrônica sem valor jurídico, mas de resultado político inegável. Bolsonaro deve ter morrido de rir.

O próprio advogado disse que “é difícil de acreditar” que o hacker, que vivia de pequenos golpes digitais para roubar contas de banco, tenha invadido as mensagens dos procuradores de Curitiba e de Moro de graça. O site The Intercept, que originalmente publicou os diálogos, revelando contatos muitas vezes indevidos entre procuradores e juiz, diz que não pagou nada, Delgatti diz que não recebeu nada, todos fizeram uso de material ilegal por patriotismo.

Assim como o hacker diz ter criado, em nome de Alexandre de Moraes, um mandado de prisão fajuto, quem pode garantir que a transcrição dos diálogos da Vaza-Jato é a exata reprodução do que estava escrito no Telegram? A sombra desses diálogos paira sobre nosso ordenamento jurídico. São provas ilegais, que não poderiam ser usadas nos julgamentos contra Moro, mas foram. De maneira indireta em alguns casos, como quando o ministro Gilmar Mendes se referia aos diálogos em seus votos sem citá-los. Outros, de maneira explícita, como num voto do hoje ministro aposentado Ricardo Lewandowski. Ou como motivo oculto para a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia.

Até hoje há tentativas de “esquentar” tais provas, como a esdrúxula tese de que, como Moro, quando juiz, as confiscou, elas se transformaram em provas oficiais. De qualquer maneira, o trabalho sujo iniciado pelo hacker de Araraquara está feito, a Operação Lava-Jato está não apenas desmoralizada, mas suas consequências neutralizadas. Quando a Segunda Turma do Supremo considerou nulo o julgamento do triplex do Guarujá, foi dito expressamente pelo relator do caso, ministro Gilmar Mendes, que a decisão só atingia aquele caso.

Mas a Justiça no Brasil, além de cega, parece que é também surda e, juiz após juiz, em diversos cantos do país, anulou condenações da Operação Lava-Jato, transferindo os processos para a primeira instância ou simplesmente antevendo que prescreveriam.

Não deixaram pedra sobre pedra na demolição da Lava-Jato, cuidando até de individualizar a vingança. O chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, deputado federal mais votado do Paraná, foi cassado, e o senador Sergio Moro vai pelo mesmo caminho. Já o hacker Walter Delgatti, comparado pela esquerda a Snowden e, por isso, merecedor de um indulto pelos serviços prestados ao país, acabou nos braços de Bolsonaro, que falou com ele, segundo a delação premiada que promete fazer, sobre o golpe que vinha sendo preparado e prometeu um indulto se ele fosse preso.

É ou não é o enredo de uma boa chanchada?

Merval Pereira, jornalista e escritor.

Fonte: https://oglobo.globo.com/