O Supremo decidiu nesta semana que os veículos de imprensa poderão ser responsabilizados por declarações feitas por seus entrevistados, caso não tomem o devido cuidado na verificação dos fatos por esses divulgados.
Essa decisão impõe aos meios jornalísticos o dever de se autocensurarem preventivamente. Mais do que ameaçar a liberdade de imprensa, atinge um dos pilares fundamentais do regime democrático, que é a existência de uma ampla e desimpedida esfera de debate público, essencial para que os cidadãos possam formar suas próprias opiniões e exercer de maneira autônoma o direito de escolher e julgar os seus governantes.
Embora a liberdade de imprensa seja um dos temas mais espinhosos do direito constitucional, o Supremo parece ter caído, desnecessariamente, em uma armadilha pueril, ao assumir como premissa de sua decisão a ideia de que “a plena proteção constitucional à liberdade de expressão é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade”. Ao estabelecer uma falsa simetria entre liberdade de expressão e diretos de personalidade (no campo do debate político), constrangeu indevidamente a proteção da liberdade de expressão.
A Constituição de 1988 adotou um regime de primazia da liberdade de imprensa ao definir que a “lei não pode estabelecer qualquer embaraço à plena liberdade de informação jornalística”. Não pode o Supremo, portanto, obstruir a liberdade da imprensa ou atribuir aos veículos a obrigação de realizar a censura prévia do debate político, sob a pena de serem responsabilizados caso não cumpram essa tarefa.
Nesse sentido, o Supremo cometeu um grave equívoco ao permitir a responsabilização dos veículos de comunicação por eventuais informações falsas prestadas por um entrevistado, sem aferir, no momento da publicação, “indícios concretos da falsidade” ou observar o “dever de cuidado na verificação dos fatos”.
Como corretamente afirmou o ministro Barroso logo após o julgamento, o veículo de comunicação só deveria ser responsabilizado quando tivesse agido “com dolo, má-fé ou grave negligência”. Infelizmente, a tese aprovada pelo Supremo não incorporou o rigoroso teste articulado por Barroso. O “dever de cuidado” ou a existência de “indícios de falsidade” são parâmetros muito fluidos e tênues, incapazes de assegurar uma proteção robusta à liberdade de imprensa.
Conforme estabelecido pelo canônico caso New York Times v. Sullivan, decidido pela Suprema Corte norte-americana em 1964, a responsabilização do veículo de imprensa apenas deveria ocorrer quando ficasse demonstrado a existência de “malícia” ou “grave negligência” na publicação de fatos falsos e difamatórios divulgados por terceiros.
Dada a centralidade da questão da proteção da liberdade de imprensa para o bom funcionamento da democracia, assim como o compromisso da maioria dos ministros com a nossa Constituição, seria muito positivo que o Supremo reconsiderasse a sua decisão. Na forma como ficou redigida, a tese fixada pelo Supremo servirá apenas para restringir ainda mais a liberdade de expressão e intimidar os veículos de imprensa. A democracia brasileira não precisa nem merece isso.
Essa e outras questões difíceis passarão a fazer parte do cotidiano do ministro Flávio Dino caso sua indicação seja ratificada pelo Senado. Flávio Dino tem não apenas um sólido lastro reputacional como também um amplo domínio das diversas áreas do direito, sedimentado por suas passagens marcantes pelo Judiciário, Legislativo e Executivo. Poucos “juristas de Estado” congregam a experiência e o talento do ministro Flávio Dino para contribuir com uma corte que tem por missão a guarda da Constituição.
Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).