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Calcificação das ideias

Calcificação das ideias

Houve tempo em que o Brasil não tinha direita política. Todos, parlamentares e eleitores, se diziam, no máximo, de centro. Nem centro-direita era aceitável. O PT “acusava” o PSDB de ser de direita, mesmo que Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Aloysio Nunes e outros próceres tucanos fossem historicamente “de esquerda”, acusados de comunistas durante a ditadura.

A análise dos “liberais” colocava no mesmo balaio da esquerda os governos de 1994 a 2014, afirmando que a social-democracia governara por 20 anos seguidos. O PT enxergava em seu opositor PSDB um partido “de direita”, porque Fernando Henrique fora buscar no PFL seu vice, Marco Maciel. Para chegar ao poder, o PT fez o mesmo, colocando José Alencar na Vice-Presidência de Lula, e Dilma pegou Michel Temer no PMDB.

Havia uma direita envergonhada na sociedade, mas que já atuava fortemente. A partir das manifestações populares de 2013, abriu-se o caminho para a direita se expressar abertamente, e a eleição presidencial de 2014 quase deu a vitória ao PSDB, com Aécio Neves perdendo por apenas 3,28%, a menor diferença até então. Naquele momento, o PSDB era o único caminho contra o PT.

Em 2018, venceu Bolsonaro com certa facilidade, pois o líder do PT estava preso. Em 2022, Lula derrotou Bolsonaro por apenas 1,8%. Essa disputa entre petistas e antipetistas, que se tornou uma polarização na medida em que a rivalidade passou a ser com a direita sem vergonha de se assumir, ganhou contornos violentos com o estilo de fazer política de Bolsonaro. O PT, com sua origem sindicalista fragilizada em virtude da perda da contribuição sindical obrigatória, e incapaz de se atualizar na corrida digital, reduziu a virulência dos atos, assumindo cada vez mais os sintomas de partido social-democrata que o aproximam do PSDB original.

A direita, reprimida durante vários anos pela pressão social que prevaleceu durante os anos vitoriosos do PT, com Lula em pleno vigor físico, encontrou em Bolsonaro sua redenção, mesmo que seu estilo bruto e desabusado não corresponda à totalidade dos antipetistas. São dois líderes populistas. O que nos acostumamos a chamar de “polarização” se transformou em “calcificação” segundo o livro “Biografia do abismo”, do pesquisador e cientista político Felipe Nunes e do jornalista Thomas Traumann. Eles analisam a divisão política na sociedade brasileira, que veem como sedimentada sem que haja mais espaço para que um centro político, uma terceira via, possa se apresentar ao eleitorado brasileiro.

Tivemos já essa experiência nas eleições de 2018 e 2022 e, segundo eles, em 2026 continuará a disputa entre os dois lados — PT e anti-PT, representado ultimamente pelo grupo político do ex-presidente Bolsonaro. A sociedade brasileira está isolada dentro desses grupos, não há troca de opinião entre eles, e sim informação que um e outro acredita ser correta. O que restaria dessa calcificação resulta numa fatia pequena que pode decidir a eleição para qualquer dos dois lados, chamada swing voters, fenômeno já registrado nos Estados Unidos nas disputas entre os partidos Democrata e Republicano.

Mas será sempre uma vitória apertada, que não superará essa polarização, já sedimentada na sociedade e nas relações pessoais. “Biografia do abismo” é um livro muito interessante, baseado em pesquisas e análises específicas, mostrando que nosso futuro como sociedade está ameaçado por essa calcificação de posições que impede a troca de ideias e que alguma ideia nova penetre em ambos os grupos — o que é muito ruim para nós como sociedade.

O livro destaca que essa divisão tem muito mais a ver com valores de família e pessoais que com modelo econômico ou político. O enfraquecimento da democracia registrado em diversas pesquisas na América Latina é consequência dessa posição, que se pode chamar de egoísta, do eleitor, que dá mais peso a valores pessoais que às questões institucionais.

Merval Pereira, jornalista e escritor

Fonte: https://oglobo.globo.com/