Intenções mostram que o Brasil não apenas voltou, mas está se preparando para avançar por caminhos nunca navegados
Os 100 dias de governo foram sintetizados no slogan O Brasil voltou. Em alguns casos, voltou rápido e de forma eficaz, como, por exemplo, na política externa. Com o discurso em Sharm el-Sheikh, no Egito, Lula retomou o processo de conexões internacionais dilacerado pelas opções do bolsonarismo. De lá para cá, visitou Argentina, Uruguai, Estados Unidos e, neste momento, está na China. O País foi convidado a participar da reunião do Grupo dos 7, em Hiroshima, no Japão.
O Brasil voltou, também, nos programas sociais do passado, Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, sem falar no esforço de aumentar o poder de compra do salário mínimo.
No caso do Minha Casa, talvez coubesse uma renovação, um pouco mais de criatividade, sobretudo porque algumas condições foram mudadas com a pandemia e o esvaziamento dos centros pelo home office.
Existem inúmeras áreas nas quais o Brasil não pode voltar, simplesmente porque nunca foi. O discurso de Lula nos 100 dias menciona algumas: a transição energética, a produção do hidrogênio verde, o desenvolvimento sustentável da Amazônia, a universalização do acesso à internet.
Todas essas idas estão ainda na fase de intenção. No caso da Amazônia, houve a importante declaração de Lula no Egito e a escolha de Marina Silva, mas os resultados ainda não são palpáveis, exceto a retomada do Fundo Amazônia. Há sinais confusos: o desmatamento cresceu em fevereiro, a Petrobras fala em explorar petróleo na foz do Amazonas e o Ibama adia a proibição, definida por compromisso internacional, da exportação de madeiras importantes como ipê e cumaru.
Ainda no campo ambiental, o Brasil voltou no sentido de retroceder com as mudanças por decreto no marco do saneamento básico. O primeiro ponto a discutir é precisamente o fato de que o Marco do Saneamento foi produzido por um longo trabalho parlamentar de uma comissão mista do Congresso. Alterá-lo por decreto soa como uma subestimação do trabalho parlamentar e vai, certamente, trazer problemas.
O segundo ponto é mais de fundo. O presidente, em seu discurso, reafirmou a confiança no Estado como indutor do crescimento econômico e promotor da justiça social. Em tese, tudo bem. Mas tenho escrito muito sobre o papel da iniciativa privada, as imensas possibilidades que se abrem quando se alinham Estado e empresas em busca de um objetivo comum. Num dos artigos, citei o caso da conquista da Lua, descrito no livro da economista Mariana Mazzucato.
O presidente compreende o atraso brasileiro no campo do saneamento. É um problema para toda a geração de políticos que viveu o processo de democratização porque, de certa forma, explicita nosso fracasso.
Embora de natureza diferente, voltamos aqui ao debate sobre a privatização das teles. Era evidente na época que o Estado brasileiro não tinha condições de financiar pesquisas, muito menos de dar o passo tecnológico necessário para acompanhar o ritmo do mundo. Embora o aspecto tecnológico no saneamento não tenha o mesmo peso, o problema central é o mesmo: falta de poder de investimentos.
De fato, não existe, no caso do saneamento, uma certeza de que pode ser feito apenas pela iniciativa privada. Há inúmeros casos em que os Estados se saíram bem. No entanto, em todos, a questão da disponibilidade de recursos é decisiva.
A intervenção do governo flexibiliza o Marco do Saneamento em favor das estatais que se mostraram, até agora, inadequadas para a dimensão da tarefa.
Enfatizo a escassez de investimentos porque é o tema central em nosso atraso. Existem outros importantes. Em Cingapura o êxito não se deve apenas aos investimentos, mas também à combinação de tecnologia com educação popular. A Holanda, com parcerias públicoprivadas, inova na conversão de resíduos orgânicos em energia. A rede de esgotos de Paris é centralizada e administrada pela Suez, que é uma empresa estatal. Foram capazes de instalar 2.500 quilômetros de tubulações de esgoto e 1.200 de água potável. Quem não cuida bem da tubulação é multado.
O discurso do presidente Lula parece ter percebido as armadilhas do slogan O Brasil voltou. Tanto que sua última frase foi “o Brasil voltou a ter futuro”.
Mas o Brasil país do futuro é um tema do passado, desde a presença do escritor Stephan Zweig no Brasil, assunto de um livro de Alberto Dines. Zweig escreveu Brasil, um país do futuro em 1941, e foi um sucesso na época. De lá para cá, nos cansamos um pouco da ideia e estamos sempre querendo mover o país do presente.
Cem dias não bastam para julgar um governo. As intenções demonstradas no discurso mostram que o Brasil não apenas voltou, mas está se preparando para avançar por caminhos nunca navegados. Essa é a esperança de um debate que não se faz mais com as asperezas do passado recente, mas com a flexibilidade das regras democráticas.
Aliás, alguns dos fatores que nos levam a considerar as dificuldades dos primeiros 100 dias são também os vestígios do passado recente: o vandalismo de 8 de janeiro, a tragédia Yanomami e o evento extremo no litoral norte de São Paulo, 682 mm de chuva em 24 horas. Aqui, o Brasil não foi nem voltou, apenas estagnou na sua imprevidência diante das mudanças climáticas.