De repente, na semana passada, o Brasil descobriu que tem cada vez mais gente passando fome.
Junto com o noticiário da pandemia, todos os telejornais, jornais e portais começaram a fazer reportagens sobre a fome que grassa no país, não mais apenas com números, mas com gente que não tem o que comer e forma imensas filas para receber um prato de comida ou cestas básicas de ONGs, empresas privadas e entidades assistenciais.
O desespero e a tristeza profunda estão estampados nos rostos de milhões dos brasileiros, que antes trabalhavam e, com a pandemia, não têm mais recursos para comprar o básico para alimentar suas famílias.
Adultos deixam o que sobrou de comida para as crianças e vão para as ruas em busca de novas doações, mas elas estão caindo dramaticamente com o agravamento da crise econômica que atinge toda a população.
Nestas reportagens, o grande ausente é o governo, que só agora está liberando o mísero auxilio emergencial, suspenso desde o final do ano passado, agora menor e para menos gente do que em 2020. “Não tivemos retorno”, é o que mais se ouve no final das matérias que procuram uma resposta das autoridades.
Depois de atingir o nível mais alto em 1999, quando outra onda de desemprego deixou 20,9 milhões vítimas de grave insuficiência alimentar, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil vinha diminuindo os índices ano a ano, até sair do Mapa da Fome, para onde está voltando.
Em 2004, o total de brasileiros passando fome já tinha caído para 12,6 milhões; três anos depois, eram 7,4 milhões, até atingir o índice mais baixo em 2019, com 5,3 milhões, segundo a FAO.
Com a pandemia, este nível dobrou para 10,3 milhões no ano passado, segundo o IBGE, e deve subir até o final do ano para mais de 20 milhões, de acordo com estudo da ActionAid, instituição que atua no combate à fome e a pobreza no Brasil.
Ou seja, podemos voltar aos índices de duas décadas atrás, em mais um retrocesso civilizatório perpetrado pelo atual governo que destruiu as políticas públicas de segurança alimentar e combate à fome implantados durante o período, sem nenhum sinal de investimentos nesta área.
Para se ter uma ideia do que pensa o governo Bolsonaro sobre esta tragédia brasileira sem fim, resgatei uma entrevista concedida pelo presidente em julho de 2019 a correspondentes estrangeiros, em que ele negou a existência de mais de 5 milhões passando fome no Brasil. “Baseado no que a gente vê por aí, falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não comem bem, aí eu concordo. Agora, passar fome, não.”
Gostaria de saber o que o presidente pensa agora que esse número já triplicou, com o desemprego que não para de crescer, e cada vez mais brasileiros estão passando da pobreza para a miséria absoluta.
Como Bolsonaro não assiste à Globo, poupou-se de ver no Fantástico de domingo a reportagem sobre como os brasileiros estão sobrevivendo sem renda e sem comida na geladeira, vendo os filhos passar fome, enquanto voluntários se desdobram para receber e entregar doações. Brasileiro agora está vivendo como Iemanjá, vivendo de oferendas.
Igrejas e igrejas
Cometi um erro primário ao generalizar no último texto uma crítica à abertura de templos e igrejas, por ordem do ministro Kassio Conká, o togado bolsonarista do STF, como se todas as igrejas evangélicas fossem iguais. Há igrejas e igrejas, tanto as evangélicas como as católicas e outras religiões, que atuam de diferentes formas de acordo com quem as comanda.
A igreja católica do papa Francisco, por exemplo, pouco tem a ver com a do papa Bento 16. Assim também não se deve colocar no mesmo balaio as igrejas evangélicas tradicionais e as seitas neopentecostais que proliferaram em todo canto nos últimos anos, para enriquecer bispos e pastores com as “sacolinhas do dízimo”, a que me referi na coluna anterior.
Quem me chamou a atenção foi o pastor Luiz Alfredo Alves Silva, que publicou esta mensagem no meu Facebook, coberto de razão:
“Kotscho, sou um admirador seu, porém como pastor evangélico lamento sua postura e o fato de usar o poder da pena para agredir indiscriminadamente todos os evangélicos. Você colocar todos no mesmo balaio é no mínimo desrespeitoso, não apoio Bolsonaro, não vivo de oferta de igreja, sou contra a abertura precoce de qualquer estabelecimento neste momento e definitivamente não estou focado em “encher sacolinhas”. Peço, por favor, ponderar suas ideias pois existem muitos pastores honestos e genuinamente preocupados com a saúde e a vida. Se você ler este meu texto, reflita e se fizer sentindo, repense atitudes como esta. Já tem muita dor e ódio neste mundo. Gratidão e grande abraço”.
Peço desculpas ao pastor e a quem mais possa ter-se sentido ofendido com o meu texto.
Vida que segue.
Ricardo Kotscho, repórter desde 1964
Fonte: https://noticias.uol.com.br