Do execrável conjunto da obra exposta pelo vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, liberado pelo ministro do STF Celso de Mello, há muitas cenas que falam por si, e outras que merecem mais atenção e alertas pelas graves implicações para a estabilidade e a paz no país. Bolsonaro sempre defendeu a liberalização de armas e colocou o tema em destaque na sua campanha. Não engana ninguém, portanto, quando trabalha para cumprir sua promessa.
Se seguisse os devidos trâmites para despejar mais armas e munições nas ruas e residências, os embates em torno de sua plataforma armamentista ocorreriam normalmente no Legislativo, e os conflitos seriam mediados na Justiça. Mas Bolsonaro não deixa mais dúvidas de que deseja desmantelar os freios e contrapesos necessários para conter excessos de cada um dos Poderes, sendo que o Executivo brasileiro já é muito forte. Com um presidente ideologicamente espaçoso, vive-se em tensão, no limite de crises institucionais.
Na questão das armas, o Congresso já teve de conter Bolsonaro por baixar decretos presidenciais que ilegalmente alteravam o Estatuto do Desarmamento — uma lei aprovada pelo Congresso —, ato digno de ditaduras. Foi forçado, então, a enviar projetos ao Congresso. Incontido, porém, o presidente determinou ao Exército que revogasse portarias que obrigavam a adoção de normas para facilitar o rastreamento de armas e munições, a fim de permitir sua identificação: origem, proprietário etc. Sem isso, a elucidação de crimes cometidos com armas de fogo ficará muito mais difícil ou impossível.
No vídeo ele aparece gritando o jargão: “povo armado jamais será escravizado!”. Mas não revelou quem são os agentes da escravidão que tirariam a liberdade dos brasileiros, ameaça também vista pelo “militante” Abraham Weintraub, ministro da Educação. Bolsonaro, no entanto, fez uma referência nada sutil à possibilidade de reações armadas contra decisões de prefeitos e governadores com as quais não se concorde.
Significa, então, que o presidente imagina que seria cabível romper as medidas de isolamento social, às quais se opõe, com arma na mão. Ele próprio se viu indo à rua com dedo no gatilho para lutar contra a intenção “de um bosta de um prefeito” que por decreto obrigue que as pessoas fiquem em casa. Bolsonaro defenderia insurreições armadas quando os tais freios e contrapesos barrassem a sua vontade e a do seu grupo dentro dos espaços da Constituição. Isso se chama golpe.
Pode ser que o Planalto alegue que o presidente estava em um momento particularmente agitado, e não poderia imaginar que aqueles arroubos, não apenas dele, seriam divulgados.
Ainda assim é inaceitável que a plataforma armamentista do governo possa esconder projetos aventureiros, irresponsáveis, de tentativas de desestabilização da ordem constituída, que jogaria o Brasil de volta ao passado distante, em prejuízo de várias gerações.
Editorial do O Globo 26052020
Fonte: https://oglobo.globo.com