Existem duas forças, no presente momento, que disputam a conjuntura política no Brasil: de um lado, Bolsonaro e o bolsonarismo, de outro, a inércia. Forças políticas ativas raramente são derrotadas pela inércia. Como Bolsonaro e o bolsonarismo representam uma força política ativa, esta vai vencendo a inércia. O pouco que há de oposição se caracteriza pela vacilação, pela dubiedade, pela tibieza e pela covardia. Tanto as esquerdas, quanto a centro-direita, estão de quarentena política. O pouco que há de resistência aos avanços de Bolsonaro vem dos governadores e de um ou outro líder do Congresso.
Ontem, domingo, vários próceres da República, gente de camisa de punho de renda, se disseram assustados com o discurso que Bolsonaro fez a manifestantes que pediam o AI-5, a intervenção militar e o fechamento do Congresso e do STF. Ora, este é o desfecho lógico de uma situação na qual a escalada autoritária de Bolsonaro e do bolsonarismo não é detida pela força da lei, pela ação contundente do STF, do Congresso e dos líderes políticos.
Toda história política mostra que os candidatos a tiranos sempre agiram com a ousadia dos celerados. E toda história política mostra que quando as forças democráticas e republicanas agiram com tibieza e covardia, os tiranetes triunfaram. Os tiranos não chegam ao poder com o apoio das maiorias. Eles chegam ou se consolidam no poder com o apoio de minorias. Só quando eliminam a oposição e agem com os instrumentos da violência conquistam o apoio das maiorias.
Mais de 54% da população julga que Bolsonaro tem condições de liderar o país. O seu governo é avaliado positivamente por cerca de 1/3 da população. Tudo indica que Bolsonaro vem ampliando seu apoio em determinados setores sociais. Ao contrário do que se pensa, a demissão de Mandetta representou uma vitória de Bolsonaro. Ativistas e analistas imbecilizados de esquerda chegaram a comemorar a demissão de Mandetta. Não sabem o que é política. Não distinguem alianças táticas de alianças estratégicas. Agora, com um ministro da Saúde que não passa de um fantoche, o presidente tem o caminho aberto para implementar sua agressiva política de fim do isolamento social.
Bolsonaro não precisa de decreto, de medida provisória ou de qualquer outro mecanismo legal para minar a política de isolamento social. Ele a mina pela sua chamada convocatória. Hoje existem duas forças que têm poder convocatório: Bolsonaro e o bolsonarismo conseguem fazer manifestações de rua e, por outro lado, existe o movimento espontâneo que bate panelas nas janelas. As oposições, repita-se, estão em quarentena política.
Tirem-se os governadores, Rodrigo Maia e Alcolumbre, não sobra ninguém. FHC se esmera no seu proselitismo. Lula decidiu, com exceção de uma ou outra manifestação, manter-se equidistante. Ciro Gomes, embora combativo, exercita sua verve inconsequente e sectária. PT, PSol e PCdoB têm comandos fracos por opção. Decidiram sacrificar Fernando Haddad, Guilherme Boulos e Manuela por cegueira política ao não perceberem que este novo período da política exigia lideranças reconhecidas publicamente e com graus significativos de legitimidade social. Agora pagam o alto preço do sumiço na conjuntura. Os movimentos sociais – uns estão na luta de solidariedade contra a pandemia; outros estão desarticulados. Não há força organizada e ativa de resistência ao avanço da extrema-direita. Hoje não há nenhuma ação coordenada das esquerdas ou da oposição em geral contra a escalada da extrema-direita, que vem ocupando o vácuo político e os espaços de vazio de poder, tanto do governo, quanto da oposição.
A conjuntura se caracteriza por um impasse político. De um lado, tem-se Bolsonaro e o bolsonarismo abrindo caminho para uma escalada autoritária. Neste momento não podem dar um golpe porque não têm apoio militar e social suficiente para este intento. O que está claro é que a extrema-direita joga deliberada e ativamente rumo a escalada autoritária. De outro, temos as forças da centro-direita à esquerda inertes: não sabem como ou não querem deter a escalada do bolsonarismo.
Líderes da oposição propuseram a renúncia de Bolsonaro. Foi algo pusilânime, pois ou se tem força suficiente na rua para impor uma renúncia ou não se pede renúncia a alguém que marcha para o autoritarismo. Resta o impeachment. Neste momento, contudo, não há força suficiente para encaminhar o impeachment. Ele depende de um desgaste enorme do presidente, com uma popularidade no patamar dos 15% ou menos; depende de grandes mobilizações de rua e, aí sim, por último, de um acordo majoritário entre os partidos e parlamentares.
Mas é preciso perceber que a política brasileira se move por duas linhas de força opostas: uma se move rumo à escalada autoritária e outra rumo ao impeachment. Não parece haver meio termo, ao menos por enquanto. Se não há condições de realizar o impeachment, isto não significa que ele não deva ser construído. O impeachment, neste momento, precisa estar posto como propaganda ativa, com as direções partidárias adotando definições neste sentido. Contudo, tanto nas esquerdas, quanto no centro, existe um “deixa pra lá”, um “vamos deixar Bolsonaro sangrando até o fim”. Sem freios, Bolsonaro não se deterá. Uma das formas de detê-lo consiste em instalar uma comissão na Câmara para analisar a abertura de um processo de impeachment.
Na medida em que Bolsonaro discursou em ato pró-intervenção militar, o Congresso e o STF precisam cobrar um esclarecimento das Forças Armadas, principalmente do Exército. O ministro da Defesa e os generais que comandam a área política do governo deveriam ser convocados pelo Congresso para dar explicações acerca dos movimentos do presidente. É preciso constrangê-los em nome da democracia.
Conspirar abertamente contra a democracia já é um ato suficiente para abrir um processo de impeachment. As oposições precisam trabalhar no plano político a chamada ao povo para defender a democracia, denunciando Bolsonaro por querer implantar a ditadura. Bolsonaro está se apossando da noção de “povo”, afirmando que agora é o povo quem manda, é o povo quem governa. Bolsonaro se apossou também do discurso da salvação dos empregos, da renda e do prato de comida. Isto tem apelo forte num país em que a metade de sua população enfrenta condições muito precárias de vida. Bolsonaro lida com o sentimento religioso, com o senso comum, com a necessidade imediata das pessoas, por mais demagógico e perigoso que isto possa ser, para consolidar apoio.
Está claro que para Bolsonaro não importa quantos vão morrer, quantos vão ser infectados, quantos atestados de óbito serão assinados, quantas sepulturas serão abertas, quantos corpos ficarão expostos, quantas pessoas entrarão nas filas para serem atendidas em hospitais sem vagas, quantos e quais pacientes os médicos terão que escolher entre aqueles que vão viver e aqueles que vão morrer. Nada disso importa. Bolsonaro lida com a noção de que, no final das contas, a maioria será salva e que a maioria não terá parentes mortos. Este será o seu triunfo, pois ele se apresentará como o arauto da salvação da economia, o arauto da salvação dos empregos, da renda e do prato de comida. As esquerdas e a oposição em geral não sabem como escapar dessa armadilha, pois não dominam a arte da astúcia da política em benefício da sociedade e são tíbias no enfrentamento da ousadia dos celerados.
Aldo Fornazieri, Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP)
Fonte: https://www.brasil247.com