O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entra em sua reta final, com os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes. A dúvida está no penúltimo voto, o de Nunes Marques, em relação ao qual se projetam dois cenários: pedido de vista ou rejeição da inelegibilidade do político do PL. Nenhuma das duas opções muda o desfecho quase certo: o líder da extrema-direita deve ficar fora das eleições de 2026 e não se pode descartar que tenha problemas para concorrer em 2030.
A lei das inelegibilidades tem brecha. Diz o texto legal: “São inelegíveis os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes”.
A jurisprudência atual é firme no entendimento que “oito anos seguintes” significa durante oito anos corridos. Isso libera quem for condenado agora para disputar 2030. A eleição do ano passado foi em 6 de outubro e a de 2030 será no dia 2 daquele mês. Mas este entendimento tem pontos de vulnerabilidade.
“Esta norma produz consequências diferentes para pessoas em situação semelhante”, disse a procuradora Silvana Batini, professora de direito eleitoral na FGV do Rio. Tudo depende do calendário. “É uma loteria”, admite o advogado e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) José Eduardo Alckmin. Quando semelhante aleatoriedade entra na equação é evidente que há uma falha no sistema. Cabe ao TSE a arbitragem. A composição da Corte está sempre mudando e “ninguém se sente refém da construção da jurisprudência anterior”, opinou outro experimentado advogado de causas naquela Corte.
Os dois primeiros dias de julgamento deram a entender que a polêmica levantada pela defesa de Bolsonaro sobre a inclusão no processo da “minuta do golpe” encontrada em janeiro na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres poderia ter sido evitada sem prejuízo da causa.
O processo fica em pé sem ela, como demonstram as argumentações do relator Benedito Gonçalves e dos ministros Floriano Marques e André Tavares. Comprou a tese da defesa apenas Raul Araújo.
Não seria preciso a minuta para configurar a ameaça à normalidade eleitoral e o abuso de poder político que representou a reunião do então presidente com embaixadores em 18 de julho do ano passado. Em resumo sumário, os ministros constataram que Bolsonaro disseminou em reunião para a comunidade internacional mentiras sobre o sistema de votação para desacreditar uma derrota eleitoral que se avizinhava e criar ambiente para um golpe. Fez isso usando a estrutura de cargo e a TV pública.
É possível se chegar a essa conclusão com o que se conhecia até 11 de janeiro de 2023, véspera do encontro da minuta que descreveu um roteiro para anular as eleições em um golpe mascarado de roupagem jurídica.
Seu uso no julgamento reabre discussão de 2017, quando o TSE entendeu que não era admissível no processo que julgava a cassação da chapa Dilma-Temer a inclusão das revelações das delações no âmbito da Lava-Jato, que indicavam recursos ilícitos na eleição de 2014. O tribunal concluiu que essa produção de provas depois de encerrada a instrução era alheia ao objeto original da proposição feita pelo PSDB. Para Alckmin, advogado da parte perdedora na ocasião, isso é mudança de jurisprudência. “Estão aceitando fatos que se revelaram depois da inicial proposta, que é essencialmente o que defendíamos”. Para Gustavo Bonini Guedes, que defendeu Temer, uma coisa nada tem a ver com a outra. “Não havia na ocasião nexo temporal e ligação com os fatos, agora há”, comentou.
É pauta de seis anos atrás, trazida à tona por Bolsonaro agora para se vitimizar, alegando que a Justiça está julgando o processo pela capa. Foi o que restou a ele argumentar.
Em seu voto, Benedito Gonçalves apontou a “convergência discursiva entre a apresentação feita aos embaixadores e a minuta revelada”. O próprio ministro, entretanto, relativizou o achado em várias ocasiões. Reconheceu que não há como afirmar que Bolsonaro tenha tido conhecimento do texto e que não é possível concluir que foi preparado um golpe de Estado. Disse ainda que “não constitui objeto da presente ação apurar a autoria da minuta e sua repercussão criminal, tampouco investigar a orquestração concreta de um golpe”. Sendo assim, seria realmente indispensável tratar da minuta na ação? Nas palavras do próprio Gonçalves: “A minuta está longe de ser o ponto central dessa ação. É apenas uma imagem, quase uma parábola”.
Floriano Marques foi além em seu voto e disse que não apenas a minuta como as “lives” realizadas por Bolsonaro em 2021 e também citadas por Gonçalves na contextualização da culpa do ex-presidente são “marginais para a análise dos fatos, objeto desde sempre dessa ação”. Tavares sequer mencionou a questão em seu voto.
A firula jurídica pode embasar algum recurso de Bolsonaro ao Supremo, com modestas chances de êxito. Ao transformar ao longo de seu mandato o Poder Judiciário em seu grande inimigo, Bolsonaro partiu para o tudo ou nada. Deu nada e ele agora paga o preço.
César Felício, jornalista
Fonte: https://valor.globo.com/