“Eu não entendo essa gente: tá nadando em merda e batendo palmas pro Bolsonaro”. A frase foi entreouvida no final de 2019 numa parada de ônibus, onde dois homens conversavam sobre a situação do país, o aumento absurdo do preço da carne bovina, o imposto para desempregados, aumento do desemprego, etc. Havia leve indignação no tom da conversa. Na verdade, essa frase retrata o comportamento de parte da população, que está enfrentando sérias dificuldades, mas ainda acreditando que o capitão é o melhor presidente dos últimos tempos. Segundo as últimas pesquisas do Datafolha 30% acha o governo Bolsonaro ótimo ou bom e 32% regular, o que significa que pelo menos 62% da população está satisfeita com o governo do capitão. Se não são masoquistas certamente são alienados, vivendo fora da realidade, sugestionados talvez pelas notícias da Globo, segundo as quais a economia do país vai muito bem. Ou os irmãos Marinho estão felizes com a agenda neoliberal do ministro Paulo Guedes ou, então, pretendem agradar a Bolsonaro, que declarou guerra contra eles, ameaçando-os, inclusive, de suspender a concessão da televisão. Afinal, o que falta acontecer em 2020 para que haja realmente indignação e ocupação das ruas? O fim do salário mínimo, do bolsa-família e da estabilidade do servidor público ou uma voz de comando na Internet como a do MBL, que arrastou para as ruas milhares de pessoas fantasiadas de amarelo para protestar contra o governo Dilma?
O fato é que se não houver mobilização capaz de despertar o povo do estado de letargia em que se encontra o capitão vai continuar, neste ano de 2020, massacrando-o com a subtração dos seus direitos e conduzindo o país para uma ditadura. Afinal, segundo pesquisa do Datafolha, a democracia está perdendo o apoio da população: de 69% em 2018 caiu para 62% em 2010 e 22% já não se importam se vivemos numa democracia ou numa ditadura. Esse estado de ânimo – ou desânimo – deve acender o sinal de alerta dos democratas, pois se nada for feito a instalação de uma ditadura vai acabar acontecendo como um fato natural, aceito pela maioria sem nenhum gemido. Não custa recordar que no ano recém-findo Bolsonaro lançou vários balões de ensaio sobre a possibilidade de uma ditadura, inclusive acenando com a lembrança do AI-5, o ato institucional que permitiu ao regime militar fechar o Congresso, cassar mandatos, suspender as garantias individuais, etc. Não é segredo para ninguém que ele não consegue digerir as derrotas no Parlamento e muito menos as críticas, o que atiça a sua índole autoritária, revelada nas declarações grosseiras e nos ataques à imprensa. O que provavelmente o obriga a controlar seus impulsos ditatoriais é a falta de apoio da cúpula militar para uma aventura desse tipo, talvez porque hoje os tempos são outros e os golpes ficaram mais sofisticados e sutis com o uso do lawfare.
Na realidade, a mudança dessa situação poderá acontecer mais por despreparo do próprio Bolsonaro, que se tornou o maior adversário deles mesmo, do que pela ação do povo, já que a oposição, afora manifestações isoladas, também tem se revelada apática. Não fora Lula e dir-se-ia que a oposição praticamente não existe, sendo exercida hoje muito mais pelos partidos descontentes do que pela Esquerda. Em menos de um ano de governo, completados no dia primeiro deste mês, Jair Bolsonaro conseguiu a proeza de transformar em inimigos grande parte dos seus aliados, inclusive implodindo o partido que o elegeu, o PSL, hoje parcialmente na oposição. Parlamentares que brigavam por ele, como os deputados Alexandre Frota e Joyce Hasselmann, entre outros, são hoje ferozes adversários que podem oferecer uma enorme contribuição para a sua queda, pois conhecem de perto os seus “podres”. Ele transformou em inimigos até velhos companheiros de farda, que também o ajudaram a eleger-se, foram inicialmente reconhecidos com a nomeação para cargos no governo e depois descartados, como consequência de intrigas fomentadas pelos seus filhos. Esse regime implantado por ele, a “filhocracia”, foi um dos grandes males do seu governo, talvez a causa maior das suas dores de cabeça. Ele pode ser um bom pai, mas errou ao misturar a família com o poder, permitindo que os filhos tivessem mais autoridade do que ministros de Estado, o que provocou o afastamento de aliados leais como Gustavo Bebianno, hoje seu adversário.
Embora venha decepcionando também grande parte dos seus eleitores, cuja debandada já foi registrada pelas pesquisas, pelo menos por enquanto Bolsonaro não deverá preocupar-se com a possibilidade de impeachment, porque o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, ao contrário do que fez Eduardo Cunha quando no comando da Casa, procurou tranquilizá-lo prometendo não admitir nenhum dos pedidos já protocolados na secretaria do Parlamento. Isso, porém, não é garantia de que o impedimento não venha a acontecer, porque Maia, hoje uma espécie de primeiro ministro fake, que atribui a si algumas decisões da Casa, pode mudar de ideia a qualquer momento se vislumbrar melhores perspectivas pessoais para o futuro. Ninguém conseguiu ainda descobrir se o seu choro quando fala da aprovação da reforma da Previdência, que tantos males trouxe para o trabalhador, é de felicidade ou de remorso. De qualquer modo, não se deve perder de vista o deputado do DEM, que só tem mais este ano de mandato na presidência das Câmara e que, a julgar por sua pose de presidente, não pretende interromper sua escalada de poder, o que significa que deve continuar sua estratégia política responsável por seu trânsito relativamente livre na oposição e no governo: ora assume uma postura oposicionista e ora governista, como um camaleão que muda de cor de acordo com as conveniências do momento.
Embora ainda exista quem alimente a esperança de que Bolsonaro possa mudar neste ano de 2020, um otimismo exagerado que reflete ingenuidade ou burrice, os realistas acreditam que tudo vai piorar ainda mais. Depois de destruir as conquistas sociais mais importantes do país, de fragilizar e desmontar nossas estatais, de estimular as queimadas na Amazônia, de entregar a base espacial de Alcântara aos americanos e de transformar o Brasil na privada de Donald Trump parece que Bolsonaro não se deterá diante de nada. Nunca o nosso país, em toda a sua história, foi tão humilhado como agora, quando o presidente dos Estados Unidos, depois de obter de Bolsonaro até a isenção de vistos para o ingresso de norte-americanos em território nacional, simplesmente sobretaxou o aço brasileiro, com graves prejuízos para o setor. E isso após o capitão declarar seu amor a ele e deixar o Brasil de quatro. Os empresários, que financiaram a sua campanha e sustentam o seu governo, devem estar felizes, assim como todos os que estão levando ferro. Os jornalões já começam a chiar, inclusive porque pela primeira vez estão vivendo a pão e água, mas a Globo, em particular, apesar de esculachada e ameaçada de perder a concessão, continua bajulando o Presidente: de acordo com o noticiário do JN a economia está em franco crescimento. E tem ainda muita gente que, apesar de sentir na pele o desastre Bolsonaro, acredita no que diz o Bonner. Exatamente o que retratou aquele sujeito da parada de ônibus.
Ribamar Fonseca, Jornalista e escritor
Fonte: https://www.brasil247.com/