O governo chinês ainda não se manifestou oficialmente sobre os dramáticos relatos vindos da Rússia sobre a rebelião convocada pelo líder do grupo miliciano Wagner, Yevgeny Prigojin. Quando e se o fizer, será com a cautela que caracteriza sua diplomacia. Mas certamente Pequim está acompanhando com apreensão os acontecimentos e traçando cenários que até agora não considerava os mais prováveis, como uma luta intestina na frente russa que saia do controle de Moscou. A imprensa estatal tem repetido o discurso oficial russo, de que o movimento liderado por Prigojin é um ato criminoso.
O apoio tácito da China à Rússia na guerra da Ucrânia é motivado pela agenda comum de resistir a uma ordem mundial que ambos consideram dominada pelo Ocidente e contrária a seus interesses. O apoio é principalmente político e econômico. Embora aparentemente não haja fornecimento de armamento, analistas apontam indícios de cooperação militar indireta ao esforço militar russo. No início do ano os EUA impuseram sanções a uma empresa chinesa por fornecer imagens de satélite da Ucrânia, não ao Exército russo, mas a este mesmo grupo Wagner que agora virou inimigo de Moscou.
A posição chinesa tem mais nuances do que sugere a “parceria sem limites” declarada entre os países na véspera da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, que foi motivo de inquietação no Ocidente. Ainda que desde então Pequim jamais tenha dado sinais públicos de distanciamento de Moscou, nos bastidores há sinais cada vez mais frequentes do incômodo criado no governo chinês pelo prolongamento da guerra e suas consequências políticas e econômicas.
E mais: como a estrutura militar russa serviu de modelo para o Exército de Libertação Popular chinês em sua origem, as dificuldades encontradas por Moscou no campo de batalha são má notícia para a liderança chinesa, que tem usado a guerra na Ucrânia para rever conceitos e repensar cenários de guerra, o mais óbvio deles, uma possível invasão a Taiwan. Especialistas estrangeiros que estiveram recentemente em Pequim contam que militares chineses não esconderam sua surpresa com a incapacidade russa de uma vitória decisiva.
Por outro lado, a China é um dos poucos países que se beneficiaram da guerra. Enfraquecido pelas sanções do Ocidente, Moscou tornou-se dependente de Pequim, como principal destino de suas exportações de gás e petróleo e maior fornecedor de tecnologia. Inicialmente criticada por não condenar a guerra lançada pelo Kremlin, a China deu um jeito de reinventar seu papel no conflito, apresentando-se como mediadora. E seu discurso em defesa da multipolaridade lhe rendeu pontos com países do sul global, oferecendo a eles uma blindagem à pressão do Ocidente para que aderissem a sanções contra a Rússia.
A longo prazo, é até possível enxergar vantagens para Pequim num colapso da Rússia, como a exploração de um enorme espaço territorial sem dono com vastas reservas minerais, além da retomada de territórios sob controle russo que a China considera seus. Mas o governo chinês é por natureza avesso ao caos, e uma guerra civil na Rússia teria consequências imprevisíveis, principalmente se levasse à ascensão de um governo pró-Ocidente. Como disse em entrevista ao GLOBO o especialista russo Alexander Gabuev, “a China quer a Rússia enfraquecida, não derrotada”.
Com a “rebelião armada” anunciada pelo líder do grupo Wagner, entretanto, surge uma outra possibilidade, a de a Rússia ser derrotada pela própria Rússia. Após um ano e meio de guerra, ficou claro que há limites para o quanto a China está disposta a fazer por Moscou, com apoio econômico moderado a fim de evitar o colapso da economia russa (e ter acesso preferencial ao petróleo), mas sem envolvimento direto no esforço militar. Já num conflito interno seria mais difícil para Pequim tomar um lado abertamente, pois iria contra o princípio número um da diplomacia chinesa, o de não interferir em assuntos internos de outros países.
Ajudar a sobrevivência da Rússia usando a retórica da solidariedade contra o Ocidente é uma coisa. Mas salvar a Rússia dela própria, aí já são outros quinhentos.
Marcelo Ninio, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/