O escândalo das “joias das Arábias” confirma a máxima de que tudo o que começa errado vai errado até o fim, e esse é exatamente o caso da interferência política do então presidente Jair Bolsonaro em todos os órgãos de Estado e de investigação nos últimos quatro anos. Ele não “apenas” rachou e estressou ao máximo a sociedade brasileira, mas também a máquina pública.
Desde o início de 2019 já vieram os sinais de que ele não tinha apetite para governar o País nem prurido em manipular Polícia Federal, Coaf, Receita, Petrobras, Caixa Econômica Federal, Itamaraty, Forças Armadas e tudo o mais. Só pensava naquilo: reeleição. Passava panos quentes nos malfeitos de filhos e amigos e perseguia os adversários.
A boa notícia é que há resistência, que borbulhou em setores da sociedade e se alastrou pela máquina pública, dividindo ministérios e órgãos entre bolsonaristas prontos a fazer tudo o que seu mestre mandasse e funcionários de carreira, concursados, determinados a seguir a Constituição, leis e regras.
Os dois estojos de joias, um masculino, já embolsado por Bolsonaro como presente “personalíssimo”, e outro feminino, apreendido em Guarulhos, são o fio da meada de uma grande aula sobre essa divisão. Enquanto ele manipulava a cúpula da Receita e do governo, a corporação se movia para se autoproteger e fazer valer as regras. Daí o choque.
Em Brasília, o secretário da Receita, chefão do órgão, atendia às pressões do presidente e telefonava para um subordinado em Guarulhos para que liberasse – sem poder – as joias de R$ 16,5 milhões presenteadas à primeira-dama pela Arábia Saudita. Aliás, como um subordinado que acessou criminosamente os dados fiscais de adversários do presidente e de um procurador que investigava as rachadinhas dos Bolsonaros.
Na base, lá estavam fiscais como Marco Antônio Santana, que recebeu o sargento enviado pelo Planalto em avião da FAB e disse sucessivos e sonoros “não”: ao ofício do governo, ao telefonema do tenentecoronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, ao chamado do secretário da Receita, Julio Cesar Gomes, chefe dele.
Ou seja: disse não ao presidente da República. E com razão.
Para concluir, é importante ter funcionários exemplares, com compromisso e honradez, mas isso não basta. É preciso regras, fiscalização, controle. Não custa lembrar: assim como a mortandade nas operações policiais de São Paulo diminuiu com câmeras nas fardas, certamente a eficácia da Receita aumentou com as câmeras nas aduanas. Bom para a Receita e para o auditor, péssimo para Bolsonaro e seus paus-mandados. Está tudo lá, gravado, demolidor.
Eliane Cantanhede, jornalista
Fonte: https://www.estadao.com.br/politica/eliane-cantanhede