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As esquerdas e a antipolítica

“Porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai que a perda do patrimônio” – Maquiavel

Vimos insistindo na constatação de que os partidos de esquerdas entraram na defensiva no início de 2015 e de lá não conseguem sair. Praticamente todas as iniciativas que lançaram desde então fracassaram, foram derrotadas. As justificativas para as derrotas não convencem. Os partidos se negam, sistematicamente, a um exame acerca de seus erros. Adotam a tese de que sempre estão certos e de que suas derrotas se devem aos inimigos, à grande imprensa, ao judiciário etc. Claro, se um exército é derrotado é porque alguém venceu. E se alguém venceu as causas, em geral, são duas: os erros dos derrotados, que devem ser considerados em primeiro lugar, e os acertos dos inimigos.

A tese de que os mais fortes sempre vencem é absolutamente falsa e sistematicamente desmentida pela história. Basta citar três exemplos: Alexandre venceu os persas com um exército muito menor; as forças de Pompeu eram muito superiores às de Júlio Cesar na guerra civil e o último venceu; os vietnamitas, pobres e mal armados, derrotaram a maior potência militar do mundo.

Ao não examinar os seus erros com rigor, as esquerdas adotam uma postura autocomplacente, vitimista, de autopiedade, que as conduz à indolência, ao fracasso e as afunda no lodo da história. Desde o início do governo Bolsonaro, alguns analistas e dirigentes de esquerda oscilam entre duas fake News: a iminência da queda de Bolsonaro ou a iminência de um golpe militar de Bolsonaro. Nenhuma das duas diretrizes tem base na realidade: Bolsonaro nunca esteve perto de cair e nunca esteve perto de dar um golpe. Confundiram os desejos de Bolsonaro e de alguns grupelhos radicais como dado da realidade.

Acerca do impeachment, no momento em que Bolsonaro se mostrou mais frágil e mais isolado politicamente, os partidos de esquerda se mostraram dúbios e vacilantes quanto a propô-lo. Só esboçaram algum plano de mobilização quando aquele momento tinha passado. Não deu em nada.

Outra enorme perda de tempo e de energia, por conta desses equívocos, foi a discussão inútil acerca das frentes: frente democrática, frente popular, frente antifascista. Discussão que virou pó.

Agora Bolsonaro cresce nas pesquisas e muitos estão perplexos, pois não conseguem entender como uma política genocida e antipopular reduz o apoio às esquerdas e desloca eleitorado popular e petista para o presidente. Muitos insistem em fechar os olhos e dizem que o apoio a Bolsonaro é efêmero. No entanto, é preciso considerar o seguinte:

1 – Bolsonaro, até agora, vem vencendo a batalha da pandemia, por três razões:

a. A morte é uma grande tragédia apenas para as famílias atingidas. Mesmo com grandes números de mortos, as pessoas que não são atingidas tendem a naturalizar a morte. Passado certo tempo, até mesmo os familiares naturalizam a morte. Daí que o “e daí” de Bolsonaro, o “é da vida morrer”, têm um impacto negativo apenas residual;

b. Para os que não são atingidos pela morte e mesmo para as famílias mais pobres que são atingidas pela morte, a questão econômica é preeminente. O ganho, o interesse egoísta para alguns, e a sobrevivência para os mais pobres, são prioridades. Não é possível fazer política sem considerar o doloroso realismo de Maquiavel, indicado na epígrafe. Bolsonaro, de forma oportunista, especulou com o interesse egoísta das pessoas e com a necessidade de sobrevivência. Em contrapartida, as esquerdas ficaram combatendo o golpe, o fascismo e derrubando o presidente;

c. As esquerdas perderam a batalha do Auxilio Emergencial, proposta que nasceu no campo popular e que foi apossada pelo governo, que propôs, inicialmente, apenas R$ 200,00. Aprovado o auxílio, as esquerdas deixaram de capitalizar a conquista e de denunciar o governo, de denunciar as filas vergonhosas que se formaram nas agências da CEF. Deixaram liderar a proposição da extensão do auxílio e de tomar a iniciativa de propor a renda mínima. Bandeiras que são tradicionais das esquerdas estão sendo tomadas pelo governo.

2 – Alguns líderes importantes dos partidos de esquerda se esmeraram, durante a pandemia, em aparecer nas Lives a partir do aconchego dos seus lares. Fizeram proselitismo com algo doloroso para o povo pobre: mostraram que estavam seguindo à risca a quarentena, recolhidos no seio da família e no conforto de suas moradas. Doloroso, porque a esmagadora maioria do povo pobre não podia sentir esse conforto: muitos precisavam ir para a rua, trabalhar, buscar o sustento, tomar ônibus, trens e metrôs lotados. Os gregos antigos já nos ensinavam que refugiar-se no oikos, na família, na propriedade, na casa, era uma atitude antipolítica. Os lugares próprios da atividade política popular são as praças, as ruas.  Os senadores do PT chegaram a emitir uma nota para que as pessoas não fossem nas manifestações convocadas pelas torcidas organizadas, como a que ocorreu no Largo da Batata.

3 – Com a popularidade em alta e a rejeição em baixa, há quem diga que Bolsonaro vai ser um grande cabo eleitoral nas eleições municipais. Esta conclusão é duvidosa: em eleições municipais a dinâmica das disputas é definida pelas questões locais. Apenas subsidiariamente as questões nacionais têm alguma incidência.

4 – Diante deste quadro, coloca-se a velha questão: que fazer? A resposta é difícil. Mas sem corrigir os erros não há resposta e, se houver, será equivocada. Num ambiente de 14 milhões de desempregados, de 5 milhões de desalentados, de quase 40 milhões de informais e de metade da população passando necessidades, trata-se de um brutal erro estratégico colocar temas como construção de frentes antifascistas, combate ao golpe e temas afins como centro tático na conjuntura, a exemplo do que vêm fazendo os partidos de esquerda. A defesa da democracia precisa subsidiar a luta pelo emprego, pela renda, pelo auxilio, pelo atendimento médico etc. Os partidos de esquerda fazem, praticamente, o contrário: colocam aqueles temas como prioridade e as necessidades do povo como algo subsidiário.

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5 – Além de recalibrar a tática, com o objetivo de enfrentar os problemas centrais do povo e de construir um projeto nacional, os partidos de esquerda precisam buscar vitórias em prefeituras importantes nas eleições municipais para acumular força. Bolsonaro poderá participar de forma mais ativa nas eleições no segundo turno, apoiando candidatos do centrão e de partidos de centro-direita. Visará, com isto, construir um campo de alianças para 2022. Este é um problema para o PT, pois o partido não está conseguindo ampliar à esquerda e perde ao  centro.

6 – Pelo que se deduz de manifestações de líderes petistas, o partido pretende glorificar os seus feitos do passado como centro de sua ação política. Outro erro. O partido precisa propor políticas para enfrentar os problemas do presente e do futuro e usar o passado como calço, como força e credibilidade dessas proposições. Gleisi Hoffmann afirma que as esquerdas estão atrasadas nos embates nas redes sociais. Deveria fazer autocrítica, pois ela é presidente do maior partido de esquerda. A comunicação do PT é ruim. Cabe perguntar: o que é feito do fundo partidário, dinheiro do povo, do qual o PT recebe a maior fatia?


Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp)

Fonte: https://jornalggn.com.br