No final de 2020, teremos eleições nos 5570 municípios brasileiros. Elas acontecerão em meio a uma grave crise sanitária, com o país jogado à deriva por um governo que militarizou o Ministério da Saúde; paralisou o Ministério da Educação desde janeiro de 2019, com as nomeações de duas figuras fascistamente bizarras para ministros, e tem como Ministro da Economia um elemento que declara, alto e bom som, que recursos públicos são para salvar os grandes e não para perder tempo com os pequenos. E para completar tornam-se cada vez mais evidentes os indícios de ligação do Presidente da República e seus filhos com a contravenção no Rio de Janeiro. Com tal pano de fundo, é preciso indagar qual a importância de eleições municipais para o futuro do país. Eu arriscaria afirmar que elas são muito importantes. A título de reflexão inicial, levantaria algumas razões:
O Brasil é um dos raros, se não o único país do mundo, que tem uma Justiça Eleitoral organizada dentro do Poder Judiciário. Isto não é mais uma jabuticaba sem sentido, e tem feito, ao longo da história republicana brasileira, muita diferença. Criada primeiramente em 1932, foi extinta com o golpe de 1937 e restabelecida com a redemocratização, em 1945.
A Justiça Eleitoral nem sempre age como um ou outro lado do espectro político deseja, às vezes é lenta e suas decisões colegiadas conservadoras. Mas tem garantido, em todo o território nacional, eleições com um grau de lisura que faz inveja até às chamadas grandes democracias do mundo. Entretanto, eleições também correm à revelia do TSE e seus TREs nos estados. Elas também são ganhas para além da garantia das urnas eletrônicas, do bom funcionamento das sessões eleitorais e de apurações corretas. Há uma área cinzenta, na qual o TSE consegue chegar apenas pelas franjas. Ela é composta de recursos lícitos e ilícitos que financiam campanhas, compram votos, sustentam cabos eleitorais e permitem a vasta compra de espaços preciosos nas mídias eletrônicas, onde – até a última eleição – tudo era permitido.
Seria muito simplista explicar a vitória da extrema direita no Brasil em 2018 pela existência das fakenews, mas elas tiveram um papel importante, não só pelas notícias falsas, mas também porque há indícios de que seu financiamento foi feito por empresas disfarçadas em cpfs, dinheiro público, lavagem de dinheiro, entre outros ilícitos. Esperemos que o TSE, tendo a experiência de 2018 como exemplo, esteja mais preparado e mais disposto a atacar com vigor tais disparates para garantir a total lisura das eleições.
Se acreditasse nas teorias do eleitor racional, diria, sem nenhuma dúvida, que as eleições imporão uma grande derrota ao governo Bolsonaro. Afinal, se não por suas bizarrices fascistóides, 80% da população brasileira depende em muito do Estado para viver e sobreviver através do SUS, da educação pública, do Bolsa Família e de outros auxílios sociais. E este governo tem sido um fracasso em dar respostas ou, pelo menos, em propor políticas efetivas para as áreas da saúde, da educação e da seguridade social. Se isto não for o bastante, há enorme desemprego e uma economia que, muito antes da pandemia, já se arrastava como um cágado.
Mas os leitores e a eleitoras no Brasil, e de resto nas democracias em geral, não votam a partir de uma análise racional dos dados da economia e do desemprego, mas a partir das formas como vivenciam estas condições e como são interpelados pelos diversos discursos que dão sentido à política e às crises do país. O trato com a pandemia tem sido desastroso por parte do governo federal, mas necessariamente não fará com que os eleitores de Bolsonaro o abandonem. Ao contrário, pode-se até imaginar um cenário onde a extrema- direita se coloque com sucesso como vítima da pandemia, algo incontrolável, que se abateu sobre o país e impediu o governo de fazer o que tinha prometido. Haverá uma disputa de significado pesada em torno da crise sanitária.
Mais do que a pandemia, parece que o desemprego, a miséria e a desmoralização do discurso moralista, com o cerco policial à família Bolsonaro, pode desestruturar seu aparato eleitoral. É preciso ter muito claro que as eleições não estão ganhas pelas oposições a Bolsonaro, sejam elas quais forem. Pensar assim é desastroso para as forças de oposição democráticas e progressistas do Brasil.
A classe política brasileira envelheceu em muitos sentidos, principalmente em idade e na forma de fazer política. Isto é um desastre, porque o afastamento das novas gerações, a descrença na política, é o caminho mais curto para experiências autoritárias-ditatoriais. Nas últimas eleições federais, houve uma renovação robusta no Congresso Nacional, mas ela não foi per se positiva.
A parte renovada de um legislativo, seja ele federal, estadual ou municipal, tem de trazer o frescor de novas lideranças. Na Câmara, a partir das eleições de 2018, há muitos jovens deputados e deputadas em primeiro mandato, mas a maioria foi eleita na esteira do bolsonarismo, de igrejas fundamentalistas e da participação nas mídias sociais, algumas vezes muito próximas das chamadas fakenews.
As eleições para as câmaras municipais são oportunidade para a expressão política de grupos de jovens atuantes no Brasil de 2020, que chegam com uma nova visão de participação e do fazer política: seria revolucionário se elegessem em grande número mulheres, mulheres negras, homens negros, indígenas, a população LGBTQI+, jovens das periferias, das comunidades, dos movimentos populares, dos movimentos ambientalistas, blogueiros, funqueiros, grafiteiros. Há muita coisa acontecendo em diferentes regiões do Brasil, iniciativas criativas e politicamente essenciais, progressistas e anticapitalistas. Entre estes grupos, já existem experiências inovadoras de mandato coletivo, de organizações autônomas. Estou convencida de que a entrada destes grupos na vida política institucional faria uma grande diferença para o futuro da política no Brasil.
Candidatos a postos para as eleições de 2022, até com vice a tiracolo, em plena pandemia, em 2020, são expressões coronelescas que não têm mais lugar, por seu anacronismo e falta de senso de oportunidade. De outra sorte, não se pode ficar à janela vendo a banda passar. Muito do que o campo progressista democrático poderá fazer, para lançar candidaturas capazes de disputar o certame com chances de vitória, depende das condições anteriormente expostas.
Em primeiro lugar, é preciso ter garantias de uma eleição realmente republicana.
Em segundo, convém definir as formas como nos organizaremos para enfrentar os dois próximos anos, de grande crise social e econômica, que atingirão o país. Não podemos achar que Bolsonaro e sua gangue estão mortos. Ao mesmo tempo, não podemos nos limitar a descontruí-los incessantemente.
Precisamos reconstruir o campo progressista e apresentar um projeto de esperança aos eleitores, esperança no sentido forte da palavra.
Em terceiro lugar, temos de prestar muita atenção aos resultados eleitorais de 2020. Eles nos indicarão as alianças que os setores progressistas poderão fazer. Há um amplo arco de possibilidades, de aliança pela democracia ameaçada que junta gente politicamente muito diversa a um projeto democrático igualitário e anticapitalista, liderado por setores comprometidos com a esquerda política do país. Entre as duas pontas, sem voluntarismos ingênuos, tanto em um extremo como no outro, as decisões precisarão ser tomadas com muito senso de realidade.
Essas são algumas linhas de reflexão neste pequeno artigo, há muitas outras a serem exploradas…
Céli Pinto, Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS
Fonte: https://www.sul21.com.br