O fardo deixado pela ditadura na economia foi pesado. Havia escombros nas áreas fiscal, monetária e de balanço de pagamentos. O Brasil estava quebrado e desmoralizado. Devia aos bancos internacionais, aos governos estrangeiros e às instituições multilaterais. E não pagava, rolava a dívida em bola de neve. O país tinha aberrações fiscais, três orçamentos e uma bizarra conta conjunta entre Banco Central e Banco do Brasil. O pior dessa herança maldita era que o governo havia criado o ovo da serpente da hiperinflação, a ideia de que se podia conviver com inflação alta através da correção monetária. Debaixo desse peso começou a democracia, e foi ela que enfrentou os problemas reais.
Em 2 de abril, há 60 anos, a presidência foi declarada vaga na consumação do golpe. “Canalhas”, gritou Tancredo Neves do plenário da Câmara. Como nos lembra agora Heloisa Starling, Tancredo previu ao falar aos jornalistas na saída do plenário: “Estão entregando o país aos militares por 20 anos”. Foram 21. Mas eles conseguiram pregar ao país a mentira de que foi um período bom na economia. Não foi. A ditadura dos militares foi um horror político e um desastre econômico.
Mas não houve o milagre? Sim, houve um período de forte crescimento nos anos 1970. O modelo partiu de premissas que levaram a mais concentração de renda. Não houve avanço na educação. Os censos de 1970 e 1980 registram a mesma terrível estatística: um terço das crianças estava fora da escola. Os muito pobres e os negros excluídos das salas de aula. O “milagre” contratou mais desigualdade e aumentou a pobreza. Na área educacional, a repressão política ainda fez o grotesco decreto lei 477. Por ele, o reitor abria o inquérito policial em rito sumário e o ministro da Educação impunha a pena de expulsão, de todo e qualquer estabelecimento de ensino, daquele estudante considerado uma ameaça ao regime. O ministro da Educação proibindo estudantes de estudar. Isso era uma subversão do espírito do cargo. O coronel Jarbas Passarinho aplicou muitas dessas penas.
Os três orçamentos do país permitiam gastos infinitos e impediam qualquer supervisão. O orçamento do governo, o monetário e o das estatais. A conta movimento permitia que o Banco do Brasil sacasse no Banco Central qualquer quantia para cobrir seus rombos, portanto não precisava cobrar os empréstimos generosos dados aos agricultores e grandes industriais. O BNDE emprestava a juros fixos numa inflação crescente, e assim transferiu rios de dinheiro para a elite industrial. E se toda essa derrama fosse pouca, ainda havia coisas como “operações extraorçamento” ou “operações sem limite do orçamento”. Uma bagunça que levou anos para consertar e chegar ao orçamento unificado e à Lei de Responsabilidade Fiscal. Na democracia.
Um dos pretextos para tomar o poder em 1964 foi a inflação crescente que estava chegando a 80%. Eles conseguiram reduzir as taxas num primeiro momento, depois criaram a fórmula com a qual achavam que iriam conviver muito bem com a inflação crescente, a correção monetária. Deixaram o governo com mais de 200%, mas já haviam inoculado na economia o vírus que a levaria aos patamares dos mil por cento nos anos seguintes. Desse inferno inflacionário, o Plano Real nos livrou. Na democracia.
O governo militar pegou empréstimos a juros flutuantes e o país caiu numa armadilha. Com a inflação americana provocada pelo choque do petróleo, os juros do FED dispararam e foram a 19%. O Brasil quebrou e deu início à década perdida. Nos últimos anos da ditadura o país fez sucessivas e inúteis negociações com o FMI. O país também devia ao Banco Mundial, BID, governos de países ricos reunidos no Clube de Paris e a 750 bancos comerciais. A ditadura entregou à democracia uma dívida impagável.
Ela foi renegociada com competência, paciência e boa engenharia financeira durante anos pela equipe chefiada pelo economista Pedro Malan. A dívida deixada pelos militares foi trocada por outros papéis em que os credores tiveram que escolher entre receber mais rapidamente concedendo grandes descontos ou receber o valor total, mas com mais prazo e juros baixos. Essa dívida nova deveria vencer completamente no ano passado, 2023, mas foi toda recomprada antes. Assim a democracia renegociou, pagou e recomprou a dívida deixada pela ditadura.
Se alguém disser a você que a economia da ditadura foi boa, não acredite. É mentira.
Míriam Leitão, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/